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Romance

Histórias da Outra Margem

Nagai Kafu. Tradução de Andrei Cunha. Estação Liberdade, 128 págs., R$ 29.

Tenho um tio, Mário Guimarães, que desapareceu. Se ainda estiver vivo, terá seus 90 anos. Trabalhou, durante longo tempo, no almoxarifado do jornal O Globo. Aposentou-se. Por motivos diversos, afastou-se de quase toda a família. Nunca se casou, ou – que eu saiba – teve filhos. Um dia, no fim dos anos 1970, simplesmente desapareceu. É uma história antiga e turva. Meu pai lutou para encontrá-lo. Fracassou. Seu desaparecimento, ainda hoje, é um mito que perturba o espírito da família. Fingimos aceitar a perda sem sentido. A todos, porém, ela ainda esmaga um pouco.

Não me lembro por que razão contei essa história durante uma oficina literária. Uma aluna pediu a palavra. Seu pai também havia desaparecido. Os anos se passaram. Depois de revirar Curitiba em sua busca, a família decidiu que ele estava morto. Só podia estar morto. Até que um dia, o correio entregou na casa de minha aluna uma caixa lacrada. Vinha sem o registro do remetente. Minha aluna a abriu. Nela encontrou os óculos de seu pai, o pente, os documentos de identidade, fotografias pessoais, a carteira, o chaveiro ainda com a chave da casa. Tudo o que tinha de mais íntimo. Objetos que agora e enfim ele devolvia, sem nenhum bilhete, nem uma palavra, só para dizer que continuava vivo. Ou talvez não: para enfatizar que não o esperassem mais, que havia trocado sua vida por outra vida. Que agora, para eles, estava definitivamente morto.

Os dois episódios me voltam à mente enquanto leio Histórias da Outra Margem, romance do japonês Nagai Kafu (1879-1959), publicado pela Estação Liberdade, com tradução de Andrei Cunha e delicadas ilustrações originais de Shohachi Kimura. Tento explicar a inesperada conexão. O romance de Kafu é, na verdade, um relato duplicado, isto é, uma história dentro de outra história. Uma demonstração incontestável da complexidade da ficção. Passa-se em Tóquio, algum tempo depois do Grande Terremoto de 1923. Trata da vida de um homem solitário, Tadasu Oe, que escreve um romance chamado justamente "O Desaparecimento". Seu livro (o livro dentro do livro de Nagai Kafu) conta a história de Junpei Taneda, um cinquentão, pai de três filhos e que vive um casamento infeliz – de conveniência – com certa Mitsuko.

Um dia, Taneda também desaparece. Assim Nagai Kafu resume as circunstâncias: "Na primavera de seus 50 anos, veio a ordem da aposentadoria compulsória. No dia em que foi buscar o dinheiro da pensão, Taneda não voltou para casa. Desapareceu sem deixar traço". Seu personagem-escritor, Tadasu Oe, o criador de Taneda, sabe, porém, que, tempos antes, e por acaso, o desaparecido conhecera uma mulher chamada Sumiko, que trabalhava em um bar de Komagata. "Taneda passara então a frequentá-lo esporadicamente, para se embebedar de cerveja". Supõe Tadasu Oe – sem saber o motivo do desaparecimento de seu personagem – que ele tenha algo a ver com a mulher do bar.

Chega a decidir que, depois de receber a aposentadoria, Taneda, com o dinheiro no bolso, dirigiu-se ao bar de Komagata para se encontrar com Sumito. Teriam passado a noite juntos – mas ele parece não ter muita certeza disso. Só consegue chegar até aí: nada mais sabe dizer a respeito do sumiço de Taneda. "Daí em diante, ainda me falta descobrir como continuar a história", admite o escritor-personagem. Admito também eu: esse momento da leitura produziu em minha mente um pequeno golpe. Imediatamente, revi o semblante sombrio de meu Tio Mário, espantado como o Rei Lear. Revi, ainda, a face branca de minha aluna enquanto relatava, aos trancos, o desaparecimento de seu pai. Muitos leitores não imaginam os fatos imprevisíveis que surgem durante as oficinas literárias. A ficção tem o poder atordoante de arrastar consigo memórias perdidas e recordações desagradáveis. Ela é uma espécie de máquina que faz a mente se mover – e não podemos controlar a direção.

O título do romance de Nagai Kafu, Histórias da Outra Margem, não fala apenas na Tóquio marginal – simbolizada pelo antigo bairro de Yoshiwara, separado do resto da cidade por um canal e ao qual só se tinha acesso através de uma entrada, o Grande Portão. É o lendário bairro dos bordéis, das gueixas e dos prazeres proibidos. Desde a Idade Média, nos lembra Nagai Kafu, passou a ser conhecido como "ukiyo" – isto é, "mundo flutuante". Mundo em que atracam todas as coisas que a vida civilizada despreza e quer esconder. Último esconderijo, onde a vida se passa à meia luz e flutua sem destino. Mundo dos objetos perdidos, que traz em seus fundamentos a garantia de que eles jamais serão reencontrados.

O delicado romance de Nagai Kafu me leva a pensar em outro território marginal: o da arte e da literatura. Tudo aquilo que não pode se expressar claramente emerge, de súbito, e só por um breve instante, através delas. Tudo o que parece expulso, ou perdido, nelas resiste. Não sei o que minha aluna pensa a respeito – não a vejo há muitos anos e sequer recordo seu nome. Ela é, para mim também, um objeto (um ser) que desapareceu e, no entanto, resiste em minha memória não através de sua face, ou de seu nome, mas da história que me relatou. Também meu Tio Mário, ao sumir para sempre, parece ter atravessado o Grande Portão de Yoshiwara, rumo a um mundo inacessível, mais mentiroso, mas também mais livre, que o real.

Penso que ambos – assim como Taneda, o personagem de Tadasu Oe, por sua vez o personagem-escritor de Nagai Kafu – perderam-se, para sempre, na esfera longínqua da ficção. Como chegar até ela? As pessoas costumam acreditar que a ficção é "qualquer coisa". Que a fantasia é arbitrária, gratuita e prepotente. Esquecem-se, assim, de seu elo misterioso com a memória. Ficção não é memória – não é história, tampouco confissão –, mas é algo que se passa, em parte, só em parte, em sua esfera e sob seu comando. Algo que transcorre em um limite, um "limite flutuante" (como o "ukiyo" japonês), a que só temos acesso através de um portão muito estreito. É lá que o pai de minha aluna se perdeu. É por lá que perambula, vivo ou morto, meu Tio Mário. É lá que se escondem as melhores histórias que temos para contar.

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