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Poesia

A Porta

Margaret Atwood. Tradução de Adriana Lisboa. Rocco, 128 págs, R$ 24,50.

Muitos ainda acreditam que os poetas vivem nas nuvens. A canadense Margaret Atwood (Ottawa, 1939) – mais conhecida por seus romances – sabe que, ao contrário, eles habitam o presente. Tudo o que temos, poetas ou não, é o presente. Nada mais. Sobre ele, Atwood construiu seu A Porta (Rocco, tradução de Adriana Lisboa), inspirador livro de poemas. Ele dilui nossas ilusões a respeito de um "mundo poético", separado do real, e nos empurra, com toda a força, das nuvens para o chão.

Foi com grande surpresa que descobri a poesia de Margaret Atwood, escritora que – devo admitir – sempre menosprezei. Por quê? Por nada – por puro preconceito intelectual. Baseado em quê? E preconceitos lá se sustentam em alguma coisa, a não ser em outros preconceitos? Pois bem: agora venci a mim mesmo, abri uma porta e cheguei até Atwood e estou encantado.

No belo poema "Mais uma Visita ao Oráculo", ela nos fala da obsessão dos profetas em comprimir todas as palavras em uma única palavra. Talvez não seja algo exatamente dos oráculos, mas algo que deles esperamos. Vivemos em um mundo fascinado pelas sínteses, pelos resumos e pelos cânones. Um mundo que busca, sempre, facilidades de acesso às coisas. Que quer, cada vez mais, as coisas prontas.

Contudo, o mundo é múltiplo, complexo, muitas vezes confuso, e nem rios de palavras dão conta das coisas que experimentamos. Numa parte do poema, batizada "Profecia", Atwood – desmascarando as certezas proféticas – escreve: "O futuro será ao mesmo tempo melhor do que o passado e pior". Como comprimir o tempo em uma só imagem? Vivemos, contudo, agarrados à esperança de a ela chegar, posição que nos leva a aguardar por uma medonha (ainda que paradisíaca) "solução final". Terríveis desastres, como já sabemos, foram produzidos no passado em nome desse ideal totalizador. "Não há esperança?/ Perguntam isso sem cessar", escreve a poeta. A pergunta (que busca o consolo da solução) é, na verdade, descabida. E Atwood sabe disso. Prossegue: "Embora o céu esteja azul como sempre/ as flores igualmente floridas,/ ficam parados ali com a boca mole/ os braços pendendo inúteis/ como se a terra estivesse prestes a desmoronar". Não conseguem se fixar no presente. Não conseguem viver.

A esperança – espera do futuro, ou permanência do passado –, ao matar o presente, elimina a vida. E o compromisso maior do poeta, Atwood nos leva a ver, é sempre com a vida. Leitores esperam coisas terríveis dos poetas. Esperam, por exemplo, que eles – como os oráculos – lhes comuniquem a verdade. "Por que eu deveria lhe dizer algo de verdadeiro?/ Por que eu deveria lhe dizer algo?" A poesia não diz, a poesia (lembro de João Cabral) se limita a "dá a ver". Em vez de explicar, aponta. Isso, se é mesmo poesia.

Continua então Atwood, com firmeza: "Se lhe contasse o que carrega/ nas linhas da sua mão/ que eu disse estar vazia/ estar cheia de vazio/ haveria de se aborrecer". O silêncio (o vazio) é assustador. O poeta, porém, encara o vazio, e o circunda, e o borda. Vê aquilo que não se vê, e que na ausência se manifesta. "O que faço: vejo/ na escuridão. Vejo/ a escuridão. Vejo você". Não, é bom não concluir tão rápido: isso não significa que somos um zero à esquerda. Significa, ao contrário, que temos (todos, não só os poetas) um mundo a criar.

Defensora intransigente do presente, Atwood se oferece a seu leitor. "É aqui que me torno útil:/ já estive aqui/ de alguma forma./ Vou ajudá-la a chegar até a margem,/ vou ajudá-la a atravessar./ Sei a quem subornar./ Não tenha medo". Há, quase sempre, o obstáculo do medo. Por quê? Porque o presente é turvo, o presente não se deixa ver inteiramente, o presente é esquivo. Nós o habitamos como um cego que entra em uma sala onde nunca pisou. Onde estamos? Escreve Atwood: "E o que faço; conto histórias sombrias/ antes e depois de se tornarem verdades". A verdade (síntese possível) vem só depois. Muito depois. No sol do presente a vida queima e precisamos franzir os olhos.

O que faz, enfim, um poeta? Em Atividades Possíveis, Atwood especula a respeito de seu ofício. Ofício? Não: não existem manuais, não existem formações, talvez nem "obra". O nome é outro, mas qual? Poesia, e ele devia bastar. Primeiro, ela nos lembra, o poeta pode ser visto como alguém que cata feijões. "Você poderia sentar-se em sua cadeira e catar o idioma/ como se fosse uma tigela de ervilhas". Pode ser visto, também, como alguém que atiça o próprio cérebro com golpes de varetas, tentando dele arrancar mais do que, em geral, ele nos oferece. Com isso, talvez, levasse o cérebro a "emitir um som crocitante/ que você poderia chamar de verdade".

Terceira posição: encarar a poesia como "algo mais sociável/ mais orientado para o grupo". Atwood sabe que muita gente age assim: "Muita gente faz isso também./ Gostam das multidões e dos gritos,/ gostam da adrenalina". Mas, em vez de se perder nessas imagens ideais, sugere Atwood que o poeta (um homem qualquer, afinal) fique apenas consigo mesmo. Baste-se. "Agache-se. Arranje uma cortina com blackout./ Finja que não está em casa". Precisa se afastar de tudo para se aproximar de si. Afastar os truques, as técnicas, as ilusões, as projeções. Aferrar-se a si (ao presente, por mais opaco que ele seja), e permanecer quieto. Só assim se escreve poesia.

Não são ideias, as de Atwood, muito palatáveis para nosso mundo, que tanto aprecia os digestivos e os espetáculos. Nessa estratégia sombria, ela se aproxima do gótico – como se rezasse ajoelhada em um banco da Notre-Dame. No gótico, não adianta ver nada; o gótico é turvação e sombra. "Não adianta dizer/ a essa garota: Você é bem cuidada./ Eis aqui um quarto seguro, eis/ comida e tudo de que precisa./ Ela não consegue ver o que você vê". A poesia, assim, se parece com uma cegueira voluntária. Voluntária, ou inevitável? Não se pode ter medo do escuro. Diz Atwood: "Volte para o porão/ onde o pior está,/ onde os outros estão/ onde você pode ver/ como ficaria se estivesse morta/ e quem quer isso". Aceite a grande escuridão cósmica que nos cerca. Aceite que navegamos em um pequeno planeta, como uma semente. Aceite – e talvez chegue a ser um poeta.

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