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Contos

As Primeiras Pessoas

Cesar Cardoso. Editora Oito e Meio, R$ 35.

Um inferno de vozes, uma zoeira atordoante agita a mente do escritor carioca Cesar Cardoso. Para delas se livrar e lhes dar um destino, Cesar escreveu As Primeiras Pessoas (Editora Oito e Meio), reunião de 24 relatos curtos, narrados sempre na primeira pessoa (Mesmo) — mas sempre também por uma primeira pessoa diferente (Outro). Narrativas que estraçalham as ilusões que cultivamos a respeito do Eu, denunciando seu caráter provisório e sua inconstância, e desmascarando sua aparência una e imutável.

Ainda estou na metade da leitura, quando me aparece uma imagem: vejo Cesar a desempenhar, como se estivesse no centro de um picadeiro, o papel de um ventríloquo. Nos velhos circos, ventríloquos são artistas que falam sem abrir a boca e, mudando a voz de maneira tão assombrosa, esta parece sair da boca do boneco que carregam no colo, e não da sua própria. Não é fácil a arte da ventriloquia: ela exige um grande espírito de renúncia e, ainda, uma forte disposição para se colocar no lugar do outro. É o que faz Cesar em seu livro, com grande habilidade: atua como um lugar-tenente, ou seja, como alguém que se esvazia de si para ocupar uma posição alheia.

O que está em jogo no livro de Cesar Cardoso (e isso já aparece na capa assinada por Thiago Antônio Pereira) é o tema, interminável, da identidade. Estranha esta palavra, "identidade". De um lado, aponta para o Mesmo: o dicionário a define com a "qualidade do idêntico". De outro, em uma segunda acepção, assinala, ao contrário, uma Diferença: "Conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa". No fim da contas, a identidade fala de um vínculo (logo, de uma repetição) entre sujeitos ou objetos diferentes. É o que acontece quando falamos, por exemplo, de uma possível "identidade brasileira": falamos de uma suposta relação de igualdade entre elementos ou sujeitos variáveis e até incompatíveis.

A noção de identidade (recorro agora ao dicionário etimológico de David E. Zimerman) responde a perguntas fundamentais do humano. Quem sou? O que sou? O que espero de mim mesmo? Lembra Zimerman, tornando a ideia ainda mais complexa, que a palavra identidade é a soma de "idem" ("mesmo") com "entidade" (isto é, "individualidade"). Fala, portanto, de uma constância na inconstância — e é justamente isso o que mais me interessa, na verdade o que busco no livro de Cesar. No grande jorro de vozes divergentes, de maneira submersa, silenciosa, mas potente, conserva-se — aos murmúrios — a voz secreta de Cesar Cardoso, a costurar o múltiplo no Um. É ela que luto para encontrar. Mas onde ela está? O que a define — se é que algo a define? É ela, seja o que for, que faz de Cesar Cardoso um escritor. Só por isso tenho nas mãos um livro, e não dois, ou três. Só porque o autor busca, na diferença, um fio em que possa se amparar, ele nos entrega um livro que, apesar da zoeira, guarda um caráter único.

O grande rombo que caracteriza o Eu (e talvez a constante que busco seja justamente esse rombo, esse rasgão) já aparece na epígrafe tomada do Dom Casmurro, de Machado: "Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo e essa lacuna é tudo". É sobre a lacuna de Casmurro, é na esperança de localizá-la e preenchê-la ainda que precariamente que, já no primeiro conto, "Déjeuner du matin", topamos com as recordações de um narrador um tanto melancólico. Em seu caso, o Eu aparece claramente localizado na mente, e não no corpo: ele está não nos fatos concretos, ou nas características biológicas, mas nas recordações. É, portanto, um Eu tramado pela fantasia — já que a memória é, ela também, deformação e falsificação.

Nesse belo conto, Cesar Cardoso inventa (assume a voz de) uma personagem que, através da memória, e diante de sua amada, inventa a si mesmo e à mulher que ama. Nessa dupla invenção, acessamos enfim uma ilusão de Eu que, a rigor, não passa de uma das formas possíveis (e infinitas) de um Eu cambiante, ou em potência. Mas, no fecho, quando enfim o personagem decide falar, a mulher amada solta um gemido, "ou um suspiro, ou um murmúrio", e isso o cala. Depois ela se aquieta. "Sem uma palavra, sem me olhar", lamenta-se o Eu desiludido. A mulher, por certo, afoga-se também nas próprias lembranças. Nesse encontro de duas memórias inacessíveis há, enfim, a possibilidade do amor. Não garantia, mas possibilidade. Diz o Eu que Cesar porta (como a porta-bandeira que carrega seu estandarte): "E eu, eu pus a cabeça entre as mãos e chorei". É, de fato, desolador encarar um encontro que traz um necessário buraco no coração. Um encontro entre dois corações arrombados.

As narrativas de Cesar nos levam a pensar que o Eu não passa, na maior parte do tempo, das evocações que fazemos de um Eu perdido — imitando o arqueólogo que, em pleno deserto, cava em busca de um tesouro antigo que provavelmente jamais encontrará. É o que acontece em "Carta a um jovem escritor". Simulando a imagem do poeta tcheco Rainer Maria Rilke (1875-1926) e de sua célebre Carta a um Jovem Poeta, livro póstumo de 1929, este novo Eu de Cesar escreve uma carta a um jovem escritor que lhe pede ensinamentos sobre a arte de viver e de escrever. O escritor em questão, porém, tem um Eu inconstante, que se define pelo erro e pela falsificação — e a única lição que pode transmitir é justamente a respeito da instabilidade do Eu e das enrascadas que ela nos arma. Eu que é, sempre, invenção, na qual o sujeito toma posse tanto do que tem, quanto do que não tem. Diz o escritor, defrontando-se com o duplo caráter da verdade: "Se estou esquecendo o que li, também posso esquecer tudo o que não li".

E a verdade é que pode: o que não sabemos também pode ser esquecido, se assim o desejarmos. Sua lição ao jovem consulente se sintetiza em uma frase mortal: "Não sei quem sou, como é o mundo, como são as palavras e nem ao menos tenho um cachorro". Nesse estado de penúria absoluta, como dar lições? O que ensinar, senão a própria impossibilidade de ensinar? O que transmitir, senão a própria e inexorável mutação? Não tem, sequer, a companhia de um cão que, com seu olhar fiel, sempre nos ajuda a acreditar que somos alguém.

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