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Livro

Contos Reunidos

João Antônio. Apresentação de Rodrigo Lacerda. Cosac Naify, 608 págs., R$ 99.

Todo um passado – os anos de minha formação – retorna assim que abro os Contos Reunidos, de João Antônio. Eles me chegam em cuidadosa edição da Cosac Naify, com apresentação de Rodrigo Lacerda e ilustrações de Carlos Issa. Releio, devagar, alguns de meus contos prediletos: João, com sua fúria de desbravador, metido em suas bermudas sempre amarfanhadas, ressurge inteiro à minha frente. João e sua estratégia perigosa de fazer da escrita um soco. De agitar a realidade, sacudi-la, na esperança de trazê-la de volta a si – como se ela acordasse de um desmaio. Fez da palavra seus músculos. Escreveu como um boxeador.

Conheci João Antônio na redação do Diário de Notícias. Eu, um repórter iniciante. Ele, um grande repórter. Frequentei seu apartamento na Praça Serzedelo Correa, em Copacabana. A mesa da sala em grande desordem: muitos livros, cadernetas, copos de cerveja, recortes de jornais. Ali, em seu bunker de escritor, tramou suas incursões pelas frestas de um Brasil asfixiado. A ditadura estava em seu apogeu. A realidade era perigosa. A escrita foi a arma que João Antonio manejou para fazer sua guerrilha.

Esteve sempre insatisfeito com o Brasil oficial. Metia-se em suas entranhas: frequentava o submundo, preferia a companhia dos rejeitados e miseráveis, rondava os becos mais sórdidos. Quando inventou o "conto-reportagem" – seguindo as lições de seu grande mestre, Truman Capote –, encontrou um caminho para fazer da literatura não uma atividade de salão, mas uma arma de combate. Os jornalistas o viam com desconfiança: tinha a fama de exagerado e mentiroso. Os escritores também: achavam que João confundia literatura com jornalismo. Enquanto isso, ele avançava. Sempre desprezou os gêneros literários e abominou a ideia de uma literatura pura. João preferia a sujeira das ruas. Nauseante, mas verdadeira.

Em seus contos, encontramos tudo o que o mundo tem de pior – mas, também, de mais humano. João Antônio se orgulhava de suas mãos sujas. Preferia a companhia de vagabundos, prostitutas, dedos-duros, biscateiros, viciados, malandros. Sim: o Brasil Grande lhe doía, como um ferimento, e João não tinha medo de se agarrar a essa dor. Dor, raiva e uma aversão profunda pelas máscaras. Viveu, como está em um de seus relatos, abraçado a seu rancor. Escolheu-o como via régia para a verdade.

Em suas narrativas, surge, inteiro, o mundo que a classe vitoriosa preferia esconder. Um universo incômodo e cruel, de malandros, impostores, proxenetas, boêmios, traficantes, fantasmas – já que, em sua miséria extrema, não eram reconhecidos como homens. João não temia se aproximar da crueldade. Foi um leitor incansável de Dostoievski: conhecia os elos secretos que ligam o crime ao sofrimento. Suspeitava dos sensatos, a quem via, quase sempre, como engolidores de ódio. Suspeitava do ódio também, mas sabia que, sem um pouco de ódio, ou pelo menos de raiva, nada se consegue. Ainda mais naqueles tempos.

Seus personagens vivem em trânsito, circulando pelas ruas, esfumaçados, apagados – mas vivos. Perambulam pelo real, como o próprio João Antônio, um caminhante incansável, acostumado a rondar a cidade com sua pose de investigador de segunda classe. Isso mesmo: eram tempos em que a literatura era vista como uma atividade de segunda. Uma atividade suspeita. O que querem, afinal, os escritores? Por que insistem em narrar? O que pretendem?

Com um pé na palavra e outro no real – alma de cronista –, João também se esgueirava pelos becos da cidade grande. Foi um traficante: não de drogas, mas de ideias. Arrastou a realidade para o interior de seus contos. Em movimento contrário, perseguiu uma realidade que fosse um desdobramento de seus ideais. Vivia "entre" e, por isso, dava a impressão de não estar em lugar algum. João, o andante. Ninguém conseguia pegá-lo. Por isso também, e até hoje, seus contos não se encaixam em nenhuma classificação. Contos em trânsito, como o espírito errante de João. Contos de contaminação, nos quais o real se infiltra na escrita, e ela nos devolve um espelho que sangra.

João Antônio tinha o vício – a palavra é essa mesmo: vício, como uma doença – de preferir os derrotados. João, o furioso: o desejo de denúncia e desmascaramento percorre seus relatos. Eles guardam a aparência secreta de uma peça de acusação. Quando não, de um veredicto: duras condenações a um mundo que desprezava (que despreza) os que sofrem. No Brasil Grande, a ideia do pequeno era insuportável. Mas eram os pequenos que João admirava. Escrevia com ardor, não para "fazer literatura", mas para fazer da literatura uma espécie de escavadeira. Uma literatura que revolvesse as entranhas do mundo. Que trouxesse à luz o que preferimos não ver. Uma "literatura de investigação" – como se, para se tornar escritor, você tivesse, primeiro, que se formar como detetive. Literatura de repórter, enfim, na qual os fatos vêm sempre infiltrados por um grito.

Uma literatura do não dito, do não visto. Do invisível. Estranho mundo dos becos, ruelas e sarjetas. Invisível não porque não podíamos vê-lo, mas porque preferíamos não ver. Literatura contra a cegueira. Um mundo com sua própria língua – como ele anotou, paciente, em seu "Vocabulário das Ruas", que agora nos chega como um anexo dos Contos Reunidos. Um mundo, enfim, que exige novas palavras, fortes e até desagradáveis, ou ele nos foge.

Lembro-me do dia em que, em outubro de 1996, recebi um telefonema do editor José Mário Pereira, me perguntando se eu tinha notícias de João. Andava desaparecido. Ninguém sabia dele. Nos bares de Copacabana, onde tomava sua cerveja – sempre de pé e furioso –, não aparecia mais. Já vivendo em Curitiba, também eu não tinha notícias de meu amigo. Dias depois, João Antônio foi encontrado morto em sua cama. Sozinho. Abraçado a si mesmo e a seu rancor. Tinha 59 anos. Apesar da dor, fazia sentido a imagem daquele homem na solidão absoluta, navegando em seu leito, um náufrago. Em torno dele, a realidade – bisonha, medíocre, falsa – borbulhava. E ele ali, em um sono profundo, a nos dizer que, sim, a literatura pode agitar o real.

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