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Autobiografia: Itinerário de Pasárgada. Manuel Bandeira. Global Editora, 184 págs., R$ 39 | Reprodução
Autobiografia: Itinerário de Pasárgada. Manuel Bandeira. Global Editora, 184 págs., R$ 39| Foto: Reprodução

Vivemos no século da técnica. Embora nos preste serviços inestimáveis, ela também obscurece nossa relação com o mundo. A técnica é uma armadura, ela nos protege, nos permite avançar, aumenta nossa potência, mas também nos engole. Nosso embate com a técnica se acirrou ao longo do século 20 e se espalha por todas as áreas do pensamento. Na literatura, um dos registros mais preciosos dessa luta é o Itinerário de Pasárgada, autobiografia poética que o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) lançou no ano de 1954, e que está sendo relançada pela Global Editora.

A autobiografia, nos avisa o próprio Bandeira, percorre um período que começa em 1904, ano em que o poeta adoeceu de tuberculose, e termina em 1917, quando publica seu primeiro livro, A Cinza das Horas. Trata, portanto, dos antecedentes do nascimento de sua poesia, e ainda de sua primeira fase, que abarca não só A Cinza das Horas, mas Carnaval e O Ritmo Dissoluto, seus dois livros seguintes, ambos publicados em 1924. Fase em que Bandeira viveu sob o fascínio da técnica e que, segundo ele mesmo nos diz, só se encerra em 1921, quando chega ao "verso livre pleno".

Sua guinada rumo à liberdade e a si mesmo só se materializa em 1930, com a publicação de seu quarto livro, Libertinagem. Se Vinicius de Moraes, na juventude, atravessou sua "fase metafísica", também Bandeira quando jovem teve que experimentar uma estranha e áspera "metafísica da técnica", e, do mesmo modo, superá-la para, enfim, chega a sua própria voz. Tal virada já se evidencia a partir de 1925, quando começa a escrever para o Mês Modernista.

Observando essa fase inicial, o próprio Bandeira o define: "Os três livros ainda estão contaminados pela lucidez". É só quando afrouxa os grilhões da razão com o vento da poesia livre que ele, enfim, realiza o sonho antigo de se tornar não um "grande poeta" – manto que pesa e sufoca –, mas, sim e apenas, um "poeta menor". Um pequeno, mas fabuloso, Bandeira.

Para isso, é preciso que o poeta fixe seus próprios limites e desista – como ensina o grande sonho tecnológico – de tudo possuir. Ele mesmo assim descreve essa descoberta: "Foi nesses 13 anos que tomei consciência de minhas limitações, nesses 13 anos que formei a minha técnica".

A ênfase, aqui, está no possessivo "minha". Não se trata de abdicar, ou desistir, da técnica que, afinal, está no fundamento do humano. Para sugar o seio da mãe, já o bebê indefeso necessita de alguma "técnica", ainda que ela venha temperada pelo instinto; tornamo-nos humanos porque a desenvolvemos. Trata-se de outra coisa: chegar a uma técnica pessoal (um "estilo"), o que justamente nos protege de sermos engolidos pela grande técnica desumana.

É com grande esforço que Manuel Bandeira escreve suas memórias poéticas. Não são anos fáceis de relembrar. Severo consigo, comenta: "O meu arrependimento vem do nenhum prazer que encontro nessas evocações, da mediocridade que elas respiram". Começou a trabalhar nessas memórias estimulado pelos amigos Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. "O compromisso que assinei com eles nada tinha de irrevogável, porque um e outro são criaturas humanas, compreensivas". Fernando e Paulo tinham, na época, um projeto de revista, que não vingou. Foi então que Bandeira e seu projeto caíram nas mãos crespas do amigo João Condé, que editava o Jornal de Letras. Ele passou a cobrar a encomenda com insistência. Bandeira não conseguiu escapar e fez o que não queria fazer. Ainda bem que aconteceu assim.

Quando fala do "grande poeta" que desistiu de ser, Bandeira se lembra do francês Paul Valéry, para quem o grande poeta era aquele "o mais consciente possível". Recorda Bandeira que Valéry chegou a dizer, um dia, que "preferia compor uma obra medíocre em total lucidez do que uma obra-prima no estado de transe". Desde então, sob o peso das influências francesas, o poeta passou a perseguir a mais absoluta disciplina. Mas isso o desgostava. "Na minha experiência pessoal fui verificando que o meu esforço consciente só resultava em insatisfação, ao passo que o que me saía do subconsciente, numa espécie de transe ou alumbramento, tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado de minhas angústias". Em outras palavras: era mais verdadeiro.

Não foi outro o motivo que levou Bandeira, seis anos depois de publicar suas memórias poéticas, a entregar a seus leitores um livro de poemas chamado justamente Alumbramento. Poderia, também, se chamar Transe. O título, seja como for, registrava esse laço difícil, mas essencial da poesia com o arcaico e o inconsciente.

Não é, no entanto, um acesso fácil, e por isso alguma técnica é sempre necessária. Ao mesmo tempo em que celebra sua reconciliação com o "subconsciente", Bandeira admite que, antes ainda de conhecer a obra de Stephane Mallarmé – o grande mestre dos poetas cerebrais – já começava, sem saber, a se aproximar de suas ideias. "Compreendi, antes de conhecer a lição de Mallarmé, que a literatura está nas palavras, se faz com palavras (técnica, eu acrescento), e não com ideias e sentimentos". Contudo, imediatamente depois, o poeta faz uma importante ressalva: "Muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia".

Entende Bandeira que, sem a técnica (a linguagem elaborada) não se faz poesia, mas "só pelo calor do sentimento das emoções morais se transformam em emoções estéticas". Resume, assim, sua descoberta: "o metal precioso eu teria que sacá-lo a duas penas, ou melhor, a duas esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores alegrias".

A sombra desses segredos mais profundos se esconde, talvez, no Sanatório de Cladavel, na Suíça, para onde Bandeira partiu no ano de 1913, para tratar uma grave tuberculose. Nos nove anos seguintes, o poeta perderia, seguidamente, a mãe (em 1916), a irmã que lhe servia de enfermeira (1918), o pai (1920) e o irmão (1922). Graves lacunas dificultavam seu caminho. O pressentimento dessa dor profunda ficou perdido em Poemetos Melancólicos, na verdade seu primeiro livro de poemas, escrito durante a temporada em Cladavel e esquecido (de propósito?) no sanatório no dia de sua volta para o Brasil.

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