• Carregando...
Infantil -Uma, Duas, Três Princesas- Ana Maria Machado. Ilustrações de Luani Guarnieri. Editora Ática, 40 págs., R$ 32,90. |
Infantil -Uma, Duas, Três Princesas- Ana Maria Machado. Ilustrações de Luani Guarnieri. Editora Ática, 40 págs., R$ 32,90.| Foto:

Conhecimento não é só acesso ao conhecimento. Sabedoria não é apenas o compartilhamento do saber alheio. Sem uma digestão interior, sem o ruminar do que descobrirmos e, sobretudo, sem a transformação do que se recebe (invenção), não se conhece, nem se sabe nada. A ilusão do acúmulo – possibilitado pelo acesso fácil gerado pelas novas tecnologias – leva muita gente a acreditar que o conhecimento é uma espécie de grande armário, no qual você coleciona peças da moda para, caso necessite, fazer uso delas. Que o conhecimento é algo que se acumula e se gasta. E que a sabedoria, em consequência, é o mesmo que o poder de saber.

Em Uma, Duas, Três Princesas, sua nova narrativa para crianças (Ática, ilustrações de Luani Guarnieri), a escritora Ana Maria Machado se encarregar de desfazer essas ilusões. As crianças de hoje crescem, desde muito cedo, com computadores e tablets nas mãos. Como num conto de fadas, em que a varinha de condão fosse substituída por um clique, basta um leve movimento de dedos e todo um mundo se abre magicamente. Mas, uma vez virada a página de luz, tudo fica para trás – tudo se esfumaça. Desde cedo, crianças são levadas a acreditar que o saber é uma espécie de grande shopping, onde você veste uma roupa, depois outra, depois outra – até, em grande parte das vezes, não ficar com nenhuma. Ou ficar com todas, o que dá no mesmo.

Na história de Ana Maria, contrariando a espera do príncipe herdeiro, um casal de reis tem três filhas, com olhos de azeitona (a mais velha), avelã (a do meio) e jabuticaba (a mais nova). Diante da inexistência do varão, os reis convocam o parlamento para decidir se uma menina poderá, no futuro, herdar o coroa. Os parlamentares aceitam, contanto que elas recebam a mesma educação que se daria a três rapazes. O rei presenteia as três filhas, então, com três computadores, onde elas passam freneticamente a navegar. A mais velha, contudo, não abandona seu amor pelos livros. A do meio se divide entre eles e a web, enquanto a mais nova entrega-se inteiramente às maravilhas da nova luz.

Um dia, vitimado por uma estranha praga, sua majestade cai doente. Nas histórias de fadas clássicas, os príncipes seriam convocados a viajar pelo mundo em busca de um elixir mágico que salvasse o pai. Descreve: "Coisas assim como: um manto de seda tão fino que pudesse passar dentro de um anel, um pássaro de ouro capaz de cantar e dançar, uma água perfumada que conseguisse iluminar a noite e outras coisas desse tipo". Mas o que fazer com três princesas que, frágeis, não poderão desafiar tais perigos?

Por ser uma leitora apaixonada de contos de fadas, a filha mais velha – a dos olhos de azeitona – sabe que, nos clássicos infantis, o príncipe mais velho sempre falha em sua missão. "Por isso, fez a mochila, entrou no carro e partiu. Pegou a estrada e sumiu", refém do suposto destino de derrotada. De muito longe, ainda passa um e-mail para os pais, dizendo que não encontrara nenhum caminho de salvação, e sugerindo que eles mandem em viagem a filha do meio.

Menos apegada às ideias e mais às coisas do coração, e seguindo sempre a norma dos clássicos, a filha do meio decide encontrar a salvação através da prática do bem. Ajuda uma velha a carregar seus gravetos, liberta um anão que tinha as barbas presas sob uma pedra, divide seu alimento com um faminto – mas o encanto não é quebrado. Ainda se lembra de beijar um sapo, na esperança de que ele se transforme em um príncipe libertador, mas tudo o que pega é uma doença nos lábios. "O pior é que não apareceu nenhum rei dos pássaros nem das formigas nem coelhos nem dos carneiros nem de ninguém para vir ajudar".

Enquanto isso, a princesa mais nova – agora a última esperança – continua conectada à internet. "Nem precisava estudar, vinha tudo de mistura. E com um monte de figura". Leitora dos resumos das lendas clássicas que acessa na web, a menina começa a se atrapalhar. Avisa ao lobo mau para não se meter com uma vovó que vive na floresta; quebra o espelho mágico de uma velha horrorosa condenando-a à feiura eterna; troca o sapatinho de cristal de Cinderela pela bota do Gato de Botas. Seu saber rápido e superficial, em vez de ajudá-la a praticar o bem, a leva a praticar o mal.

Em grandes manchetes, os jornais do reino estampam: "As recentes trapalhadas da princesa em busca do fim do encantamento que caiu sobre nosso reino acabam sendo tão prejudiciais quanto o próprio feitiço em si". Iluminada pelas luzes sedutoras da internet, a jovem princesa "pensa que sabe uma porção de coisas, mas não sabe nada". Não tomou posse do saber, não o digeriu: não o fez seu. Lamentam os jornais: "Agora as consequências caem sobre todos nós".

Desesperados, os ministros do rei voltam a recorrer à princesa mais velha. Ela os aconselha a abandonar os saberes rápidos e as lições descartáveis, e a recorrer aos especialistas e suas lentas meditações. "Foi o que fizeram e deu certo". Em vez de deslizar sobre as luzes de um saber que só cintila, sem sentido ou direção, os sábios do reino optam pela sabedoria profunda dos estudiosos. O reino se salva. "O rei e a irmã do meio ficam bons". A caçula não abandona a internet, mas vai para a escola. E a filha mais velha, viveu feliz para sempre? "Quase. Mas ficou para sempre livre da obrigação de seguir tudo igualzinho a como já estava escrito". Aprende a pensar por si. Aprende a se voltar para dentro e pensar. Aprende a meditar.

Muitos – e evidentes – paralelos se podem traçar entre o belo conto de Ana Maria Machado e os tempos atuais. A narrativa de Ana Maria ensina às crianças que elas não devem temer pensar por si mesmas. Que não devem abandonar os estudos e os livros só porque técnicas luminosas se oferecem para pensar em seu lugar. Ensina que é possível aliar o avanço tecnológico ao verdadeiro conhecimento: que computadores, na verdade, se parecem muito mais com os antigos livros do que com mágicas varinhas de condão. Não há saber instantâneo. Não existem – nem mesmo em um conto de fadas – descobertas mágicas. O saber é algo que carregamos dentro de nós, e não um equipamento que possuímos. Só assim, vindo de dentro, ele pode nos unir em verdadeiras redes.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]