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LivroTempestades de Aço-Ernst Jünger. Tradução de Marcelo Backes. Cosac Naify, 352 págs., R$ 59. | Reprodução
LivroTempestades de Aço-Ernst Jünger. Tradução de Marcelo Backes. Cosac Naify, 352 págs., R$ 59.| Foto: Reprodução

O que um alguém sente durante um bombardeio? Que emoções mais extremas definem essa experiência? O escritor alemão Ernst Jünger (1895-1998), que combateu como voluntário durante a Primeira Guerra Mundial, descreve este sentimento, em que paralisia e horror se misturam, com uma imagem. Em Tempestades de Aço (Cosac Naify, tradução de Marcelo Backes), ele sugere a seu leitor que se imagine amarrado a um poste, sob a ameaça de um homem que balança diante dele um pesado martelo. "Ora o martelo é recuado a fim de adquirir impulso, ora ele sibila para a frente de modo a quase tocar o crânio, depois volta a acertar o poste fazendo voar estilhaços". É a experiência do absoluto imponderável, na qual um intenso horror e uma frágil esperança confluem para um só arrepio. "Essa situação corresponde exatamente àquilo que se vivencia em um bombardeio pesado", resume Jünger.

O espetáculo infernal guarda, ainda, a estrutura de uma peça de teatro. Ocorre que – para seguir essa segunda imagem – a plateia oscila, os cenários tremem e o palco se rasga. A confiança falha. Toda lucidez é inútil. Ainda assim, Ernst Jünger faz, em Tempestades de Aço, um minucioso retrato da guerra. É verdade que, um século depois da Primeira Grande Guerra, os recursos tecnológicos modificaram completamente a realidade das batalha. A guerra, hoje, parece – apenas parece – mais virtual do que real. Só um jogo colorido estampado em um monitor. Contudo, o livro de Jünger se oferece como lanterna para iluminar não só o que experimentam, hoje em dia, palestinos e judeus, curdos e budistas, minorias étnicas e religiosas perdidas nas zonas mais distantes do planeta. Mas também (bastando pensar no atentado da última maratona de Boston) os americanos comuns. Aqueles que estão mais próximos. Todos nós.

Além de voluntário na Primeira Guerra, e mesmo divergindo do nazismo, Jünger participou da investida alemã na Segunda Guerra. Quando jovem, abandonara os estudos para combater com a Legião Estrangeira. Reconhece que cresceu em uma época na qual "todos sentíamos a nostalgia do incomum, do grande perigo". A vida cotidiana lhes parecia banal. "E então a guerra tomou conta de nossas vidas como um desvario". Um louco ideal. Alistado como combatente da Primeira Guerra, cheio de sonhos de grandeza, teve, logo, a primeira visão da realidade: viu um homem que chegava de um bombardeio brutalmente ferido. "O que era aquilo? A guerra havia mostrado suas garras e jogado fora a máscara acolhedora". Acrescenta: "Era como uma aparição fantasmagórica à luz do meio-dia".

A guerra, no século 21, tem uma aparência invisível. A tecnologia e as transmissões em tempo real costumam exibir, por longo tempo, o enigmático espetáculo de um jogo de luzes, volta e meio riscado por uma explosão, ou um estrondo. A guerra – ainda que tão perto de nós – parece distante e abstrata. Sobretudo abstrata. É tudo muito diferente do momento em que Jünger viu, diante de si, o homem que definhava. "Uma força quase magnética prendia meus olhos a esse instante; ao mesmo tempo, algo se modificava profundamente dentro de mim". O que se modifica? Toda uma visão imaginária da glória – como combate viril, engajamento e poder. O real, com seu manto de sangue, passou a tomar o lugar de tudo.

Tempestades de Aço é, em certo sentido, uma narrativa radicalmente antiliterária. Até porque parte, de fato, não da imaginação e seus voos – sublime animal de asas abertas –, mas de algo mais bruto e precário: os horrores da carne. Ainda assim, penso, só um grande escritor poderia ser tão detalhista e precioso. Mesmo quando descreve as longas noites de espera nas valas das trincheiras, Jünger arranca, para usar suas próprias palavras, da "mesmice deserta" algo que, apesar de tudo, insiste em latejar. Desmoronadas as ilusões de grandeza, instala-se o tédio, "mais enervante que a proximidade da morte". No lugar da glória, a guerra é, na maior parte do tempo, estagnação. Não desprovida de instabilidade: na solidão das valas, o chão afunda e o céu treme. Conforme os bombardeiros se sucedem, surge, como descreve Jünger, "a presença viva da morte". Sim, a morte vive: ela incomoda, se mexe, disseminando a decepção e o insuportável. Observar a guerra desde dentro, sintetiza o escritor, é deparar-se com uma "visão do incompreensível".

Em meio à floresta de horrores, não se consegue dar nome ao que se vê. O que talvez nos ajude a entender um pouco algo que Jünger constatou incrédulo: a indiferença dos pássaros aos ruídos dos combates. "Era estranho que os pequenos pássaros da floresta parecessem não se importar com esse barulho cêntuplo; eles pousavam em paz acima dos rolos de fumaça, nos galhos destroçados". Durante os intervalos dos bombardeios, o escritor alemão podia ouvir "seus cantos galantes e seu júbilo despreocupado". Como pássaros não falam, a ausência de nomes para o que eles presenciam não os afeta. O que mais dói na guerra, Jünger faz pensar, é não haver um nome aceitável para aquele emaranhado de dor. "Parecia inclusive que os pássaros eram estimulados pela avalanche de ruídos que rebentava em volta deles". Talvez os ouvissem como música. Pássaros habitam o grande sono da abstração. Na floresta sem nome, Jünger constata abismado, são os únicos que, indiferentes, conservam a alegria.

Jünger rememora seus próprios sustos, ferimentos, dores. Mas Tempestades de Aço não é o relato de uma experiência de heroísmo. Estranha narrativa, que joga seu foco justamente sobre aquilo que preferimos não ler. Não só o indizível, mas o ilegível. E é exatamente desse ilegível, aquilo que nenhum sentido suporta – ou cujos únicos sentidos decorrem da surdez e da afasia –, que Jünger, muito aquém da literatura, ainda naquele terreno em que o real simplesmente ferve sem aceitar qualquer nomeação, se põe a escrever.

Deu-nos um livro áspero, desconfortável, mas que nos acorda. Não é bom acordar entre destroços, mas – sendo eles tudo o que temos – é o que de melhor há a fazer.

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