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Romance - Tangolomango - Raimundo Carrero. Record, 128 págs., R$ 29,90 | Reprodução
Romance - Tangolomango - Raimundo Carrero. Record, 128 págs., R$ 29,90| Foto: Reprodução

Branco, um branco veemente e trágico, que ilumina todas as coisas: essa é a imagem insistente que me vem enquanto leio Tangolomango (Record), o novo romance de Raimundo Carrero. O Aurélio me ajuda. "Branco: diz-se da impressão produzida no órgão visual pelos raios da luz não descomposta". O branco fala, portanto, da mistura intensa, dos mundos inseparáveis, da coabitação de contrários que designam, em resumo, a alma humana. A alma humana é branca. É assim também Tia Guilhermina, a protagonista de Tangolomango: branca, muito branca (de espírito, não de pele). Viva, muito viva, apesar da dor feroz que não a abandona.

Perguntas traiçoeiras lhe perturbam a alma. "Que é melhor? Chorar no espelho ou por trás do espelho? Mergulhar na própria imagem e deixar-se devorar por ela. Decifrar-se. Devorar-se. Vasculhar com os olhos o enigma de si mesma". Tia Guilhermina, como todo humano, é um enigma. Não sabe se faz as escolhas certas. Ninguém lhe dá garantias – nem ela mesma. Mal, muito mal, se suporta. Mas vive, e com que entusiasmo! Tem uma dor que não a deixa: o sobrinho Matheus, o grande amor (não carnal) de sua vida, que será julgado por um crime odioso. Em uma viagem ao Salgueiro, interior de Pernambuco, estuprou e matou a mãe e a irmã. Como aceitar este ato de um menino (ela sempre o chama de menino) tão amado?

Raimundo Carrero relata a vida branca e suja de Guilhermina com uma escrita, ela também, entrelaçada. A linguagem do romance imita o espírito da personagem. É o modo sutil que Carrero encontra para dialogar com a mulher que criou. Ao fundo, o velho Recife, atravessado por épocas distintas, sempre agitadas pela euforia do carnaval. Os capítulos são curtos e lembram as crônicas – talvez sejam crônicas, delicadas crônicas pernambucanas. Mas o compromisso de Carrero não é com a realidade, seu pacto é com o diabo da invenção. Tenho certeza, pois o conheço bem: e, se isso o condena, também o salva. Não consigo imaginar Carrero sem sua ficção. Um escritor desprovido de sonho é um homem amputado.

Bruscos saltos no tempo: a história do Brasil, de seus miseráveis agrupados em "blocos de sujos", de sonâmbulos que vagam pelas ruas, dos cães vadios que se alimentam do mato dos bueiros, todo esse Brasil intrincado e excessivo surge inteiro no romance de Raimundo Carrero. Mas ele não faz história – Tia Guilhermina é um fantasma –, faz ficção. Logo: imitando sua personagem, enquanto escreve sobre Guilhermina, Carrero devora a si mesmo. Quanto a ela, indiferente à presença de seu autor, é uma solitária. Mais que isso: uma mulher apaixonada pela solidão. "Não tinha namorados nem amigos nem amigas, alimentava a solidão abandonada". Os vizinhos estranham sua dedicação ao sobrinho Matheus. "Que fazia uma velha sozinha com um menino dentro de casa, tocando piano?" O garoto doce, agora um assassino. O complexo e indecifrável – branco –, o movimento atordoante das coisas. A vida, enfim.

Assim é a escrita de Raimundo Carrero: uma escrita viva que, mais que "fazer estilo", mais até do que "contar boas histórias" – como hoje está tão em moda –, agarra-se ao mundo e, em uma luta selvagem, tenta arrastá-lo para o interior do livro. Uma literatura viva, ardente, que queima as mãos do leitor. Que o acorda. "Este romance foi escrito para ser lido de um fôlego só, de preferência das seis horas ao meio-dia, com a força da luz e do sol", adverte Carrero, em breve nota introdutória. Traindo-o, comecei a ler Tangolomango em um fim de tarde, sob um abajur de luz fria. Mesmo assim, com o avançar das páginas, fui tomado por um intenso calor. Justifica Carrero em sua advertência: "Sempre escrevo de acordo com a passagem da luz porque assim aprendi a viver desde minha infância". Mas a luz não vem de fora, vem de dentro. Emana do livro, branca, muito branca, muito suja, e nos engole.

Pelo romance, circulam personagens inesquecíveis, como o dono do "único, esmolambado, triste, sujo e belo bloco O Cachorro do Homem do Miúdo". Bloco carnavalesco de um folião só, nele um homem segue um cão vira-latas, enquanto toca seu pandeiro, ou sopra o clarinete. Desconhece-se seu nome. Segue o cachorro pelos becos do Recife, não sabe andar sozinho. Isso, porém, em vez de sofrimento, lhe traz um sentido. "O que surpreende é o fato de ele seguir o cachorro. Sempre. Sem mudar de rua, de beco ou de esgoto. Seguindo, seguindo. Talvez até de olhos fechados". Este homem, que se transformou na sombra de um cão, é, um pouco, todos nós, aprisionados que somos aos instintos e aos desmandos da natureza. Infiéis a nós mesmos porque, enquanto a mente nos puxa para um lado, a carne – sempre o inferno da carne, que a ficção de Carrero nunca abandona – nos arrasta para outro. Somos assim: bichos. Podemos ter fé. Alegria. Paixões. Podemos pensar e até escrever romances, mas continuamos a ser, sempre, animais.

Também Tia Guilhermina acha que seu sobrinho Matheus está dominado pelos excessos. "Ela dizia a ele, mesmo quando era um menino, você é um homem excessivo". Ao piano, a tia tocava Villa-Lobos, Chopin, Debussy, na esperança de amansá-lo. Mas o bicho que ele carrega dentro de si só faz explodir e crescer. Somos assim: feitos de contínuas comoções e de pequenas explosões. Ela própria, Tia Guilhermina, há quanto tempo não sonha em viver em um cabaré? Segue, à risca, as palavras de Fernando Pessoa: "Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade". Para Guilhermina, as moças que vivem nos cabarés são como santas, "feito quem vive num monastério, retiro do mundo, coração das alturas". Também inveja as prostitutas: "Para ela, a prostituição tinha alguma coisa de retiro, de distanciamento do mundo, de ausência". Queria ser prostituta, mas uma prostituta sem homens. "Com homens para sonhar e não para viver". Em meio aos solavancos da vida, Tia Guilhermina – sempre arrastada pelos sons do carnaval do Recife – procura caminhos para ser. Enquanto o mundo a atormenta, ela se eleva, e expõe sua alma branca pelas ruas. Uma alma que nos envolve e que nos devolve uma imagem bela, embora cruel, do existir.

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