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Houve época, e os mais jovens podem não acreditar, em que, entre as coisas consideradas indispensáveis a um sujeito que ia a um cinema ou a uma festa, estava um pequeno pente de bolso. Todas as camisas tinham bolso e, nele, saltitavam, à mostra, alguns dentes afoitos de um pente.

Não era um acessório qualquer. Variava na cor, no tamanho, no porte dos dentes. Alguns eram duros feito mármore e outros eram moles e inquebráveis. Estes pareciam de borracha e era possível juntar suas pontas sem que partissem – com o tempo, já não voltavam à forma original, mas isto não era importante. O importante era exibir sua flexibilidade em público, causando inveja nos amigos e suspiros nas garotas.

Uns pentes traziam escudos de times de futebol, outros faziam propaganda de empresas, outros eram brilhantes. E todos despertavam a sanha de colecionadores – pois havia colecionadores de pentes, acreditem. Houve até uma guerra do pente, que deixou Curitiba de ponta cabeça, mas trata-se de outra história, que não importa aqui.

Aqui importa que pente era indispensável. Sem pente o sujeito estava nu, exposto à curiosidade pública e ao achincalhe.

Da mesma época paleolítica, vem outro objeto indispensável: o lenço. Não se saía de casa sem lenço, de preferência branquíssimo, limpíssimo, tão limpo e branco que não servia para nenhuma das utilidades a que se destinava. Servia apenas para estar no bolso, muito bem passado a ferro, dobrado com rigor geométrico, parecendo obra de Spinoza. O lenço viajava no bolso da calça e o pente no bolso da camisa.

Sem pente e sem lenço o sujeito estava frito, como se dizia então. Não tinha a menor condição de se impor na roda de amigos, não namorava ninguém, não era levado a sério. Sem pente, lenço e documento, era uma ousadia sem nome.

Ao contrário do lenço, raramente usado – paradoxalmente, era considerado falta de educação assoar o nariz em público –, o pente era usado com uma freqüência espantosa. Volta e meia alguém sacava do pente, como John Waine sacava do revólver, e ajeitava o penteado.

Até hoje não sei que necessidade era aquela de se pentear e não consigo me lembrar que aqueles fossem tempos de muita ventania. Além disso, os penteados masculinos eram lisos, empastelados junto ao crânio à custa de doses de gomas engorduradas e colantes – glostoras, gumex e afins. Grudados uns aos outros, os cabelos raramente se rebelavam, até por serem cortados rentes, as laterais ostentando fios espetados e duros.

Mesmo assim, era eletrizante o momento em que se sacava o pente.

Depois, com o Elvis Presley, os cabelos se rebelaram, avolumaram-se em topetes de engenhosa e ousada arquitetura e passaram a balançar ao ritmo do rock and roll – naquele tempo rock tinha nome e sobrenome. Mas o pente sobreviveu. Meio humilhado, imagino, pois os topetes, mal eram ajeitados, já se soltavam no espaço, sendo aquela uma época de grande rebeldia.

O pente, então, se tornou um sobrevivente da época de meu pai, com seus cabelos duros e lisos de índio, seus cortes Príncipe Danilo - nem me peçam para explicar o que era isto. Por outro lado, meu cabelo era crespo, não permitia topete, o que me colocava no limiar entre duas eras, já que os cabelos crespos ainda não tinham sido colocados na moda pelo Jimmy Hendrix e o Caetano.

Renunciei ao pente.

Mas eu não queria falar de nada disso. Queria, repetindo minha mãe – que repetia a avó dela –, dizer que cada tempo com seu uso, cada roca com seu fuso. Hoje pouca gente sabe o que é uma roca ou um fuso, mas os usos estão por aí. Hoje, digamos, a roca é o celular e seu uso é andando pela rua, a mão nos ouvidos. Não se vai nem ao banheiro sem o celular. Suspeito que eu e o Solda sejamos os últimos sujeitos no planeta que não usam esta dispensável coisa indispensável.

Diga-se em favor do pente que ele tinha uma função clara, pentear. Já o celular manda mensagens, navega pela Internet, prevê o tempo, serve de calculadora, máquina fotográfica e filmadora, dizem até que serve de aspirador de pó e escova de dente, além de outros usos inconfessáveis. Agora, permitir conversação clara e inteligível já é pedir demais. Quando sou obrigado a usar um celular, me sinto num antigo filme de guerra, mergulhado numa trincheira (a linha Maginot, talvez; como estão vendo, esta é uma crônica de alta erudição histórica), em meio a um intenso fogo cruzado, enquanto tento aos berros me comunicar com a retaguarda da tropa através de um daqueles telefones movidos à manivela.

Nunca viram? Nem eu. Só em filmes. Não está mais em uso.

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