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Laurinho Telefone, como é sabido, depois da tal lei seca resolveu vender o carro e investir o montante apurado na formação de uma adega caseira. Bebe em casa, ninguém o chateia. Quando sente falta de companhia, vai a pé ao boteco do cego Tião. Antes, vinha de carro, sóbrio. Agora, já vem bêbado. Volta como Deus permitir.

Pois ontem ele chegou esbaforido, anunciando a revolução em terras tupiniquins.

Como ninguém lhe deu ouvidos, subiu num engradado e lascou um comício. Não vou reproduzir o texto do comício, faço um resumo. O caminho da revolução brasileira estava estampado nas primeiras páginas dos jornais: já não era permitido colocar algemas em suspeitos de crimes e os candidatos com ficha suja poderiam participar das eleições. Ou seja, afirmou exultante, estava garantido um direito fundamental: todos são inocentes até prova em contrário.

Houve a chamada perplexidade geral no ambiente.

O cego Tião passou um pano encardido no balcão e anunciou que lá vinha besteira. Carlão Borracheiro e Seu Boné deram gargalhadas. Só o ilustre Dr. Plúmbeo Data Vênia, já bêbado, ficou sério. E perguntou:

– Mas que diabo de argumento é este, colega?

Laurinho lascou:

-- Simples. A questão é que os membros do Judiciário não assistem noticiários policiais – diante do espanto geral, explicou: Todos nós já vimos presos pé-de-chinelo serem algemados por conta de algum descuido, uma apropriação indébita etc. Só aqui na Vila já vimos o filho da dona Santinha ser algemado várias vezes. Mas os meritíssimos nunca viram. Prova de que nunca viram, é que nunca reclamaram.

– Não enrola, exigiu Data Vênia.

– Mas está claríssimo, colega. Bastou prenderem uns tipos cheirosos e eles viram. E perceberam o abuso de poder, a afronta, o pré-julgamento, o espetáculo das algemas.

Ninguém entendeu. Laurinho respirou fundo e continuou:

– Cito outro exemplo revolucionário das últimas horas. O STF disse que políticos com ficha suja podem se candidatar, a não ser quando condenados em última instância. Quando serão condenados? Não se sabe. Pois o Miro Pelanca...

– Meu sobrinho, resignou-se Carlão Borracheiro.

– ... esse mesmo... não foi impedido de assumir emprego público na prefeitura por conta de uns desvios praticados faz quatro anos? Foi.

– E daí, Laurinho? – Data Vênia já não suportava o suspense.

– Tá ruim, hein?! Com esse troço de lei seca vocês bebem pouco e não entendem mais nada. Pois precisamos tornar visível o abuso de poder, as interpretações errôneas das leis.

Laurinho desceu do engradado e foi em frente:

– A gente sempre mirou no alvo errado. No dia em que conseguirmos mostrar gente engravatada, cheirosa, mulheres com bolsas da Daslu nas filas da previdência, os hospitais vão melhorar. Os meritíssimos, o falante ministro da Justiça e mesmo esse rapaz que é presidente vão enxergar. É desumano algemar ou deixar pessoas cheirosas nas filas dos consultórios. E os hospitais virarão um paraíso. Enfermeiras servirão cafezinho e bolachas finas, haverá música ambiente de qualidade.

Laurinho parou na frente de Carlão Borracheiro e enumerou:

– No dia em que os filhos cheirosos desta gente cheirosa forem colocados numa escola aqui do bairro, as escolas se tornarão, por decreto, modelos internacionais. Quando os bueiros dos bairros chiques correrem a céu aberto, todos teremos esgoto. Quando os coliformes fecais fervilharem nos bebedouros dos senadores, a água pura será universalizada. Nesse dia haverá Justiça, Saúde e Educação para todos!

Carlão Borracheiro, que não costuma ser sutil, deu um soco na mesa:

– Que mal lhe pergunte, Laurinho, mas como vamos colocar esta gente nas filas de hospitais públicos, seus filhos nas escolas de favela e salpicar a água deles com essa coisa que você falou aí?

Laurinho perdeu a paciência:

– Por favor! Vocês querem que eu faça a teoria da revolução brasileira e ainda por cima que resolva estas ninharias? Assim já é demais!

E voltou para casa, onde a adega o esperava.

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