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Tenho notado, nesta inundação de talk shows que invade a tela das televisões, que, dependurada na primeira resposta, lá vem uma confissão comovente: o entrevistado é um exemplo de modéstia e humildade. Apesar da vida sob holofotes, da fortuna astronômica, da vida de astro, dos inúmeros seguranças, das viagens pelo mundo. Rico e (aparentemente) feliz, a celebridade do momento se declara modesta. É uma pessoa simples.

Há muitos anos, Nelson Rodrigues, que tinha aversão à hipocrisia, declarava em entrevista a Clarisse Lispector que estava abismado com a quantidade de tímidos na literatura brasileira. Todos – e Clarisse entrevistara uma penca deles para a revista Manchete –, se declaravam tímidos. Tímidos e capazes de rubores de anjo barroco. E Nelson disparou com ironia apoteótica: "Antes de mais nada, quero declarar alto e bom som: eu também sou um tímido!"

Mudam os tempos, mudam os personagens e as confissões mais ou menos sinceras. Hoje, os entrevistadores não estão à altura de Clarisse e as celebridades não são escritores do nível daqueles que ela entrevistou, mas criaturas que ocupam a mídia por conta de alguma esquisitice. Há o gago profissional, a beldade moldada a golpes de silicone, o intelectual solúvel em água com açúcar. Criaturas que por uma esquisitice ou outra viraram celebridades e, quando menos se espera, publicam um livro, fazem um filme, lançam um CD. Não demora e estão dando autógrafos no livro, nas camisetas, na revista onde aparecem em poses que deixariam os tímidos de outros tempos estarrecidos. E, é claro, declaram para começo de conversa: apesar da fama, continuam com a mesma modéstia de quando usavam sandálias havaianas não por moda, mas por necessidade.

O mundo está infestado de modestos. Talvez São Francisco de Assis, caso vivesse entre nós, se sentisse diminuído com a proliferação de tanta virtude.

Virou moda ser modesto embora o portador desta qualidade inefável alardeie aos quatro ventos sua postura humilde, o que não parece modesto. Deve ser de mentirinha. Aliás, falando em humildade, o mesmo Nelson Rodrigues, pensando nas declarações dadas por jogadores de futebol, fez outra declaração marcada pela sinceridade contundente que cultivava: ele não era humilde, não gostava de humildes, não achava que os jogadores, diante de um adversário qualquer, devessem se dizer humildes. E arrematava, com a precisão de sempre: "humildade é uma virtude de subdesenvolvidos!"

Vemos que as coisas são mais complicadas do que parecem e que nestes dias de declarações politicamente corretas (o politicamente correto é uma forma de se abdicar do pensamento), os oportunistas de sempre fazem poses de bons moços, gostam do que todos gostam, elogiam aqueles que todos elogiam e confundem, num samba do crioulo doido que está a exigir um novo Stanislaw Ponte Preta, textos capengas com obras-primas, musiquinha chinfrim com as "Coisas" do Moacir Santos, cinema inspirado em novelas de televisão com Fellini ou Kurosawa.

Não se trata de fenômeno novo, porém. Épocas de decadência já vitimaram a história da humanidade em vários momentos e, para ficar num exemplo, lembremos que no chamado período helenístico os gregos haviam perdido de tal forma as referências culturais que colocavam artistas menores seus contemporâneos na mesma altura daqueles que viveram no século de Péricles. Enfim, decadência é isto.

Assim, mudam os tempos, as celebridades, bem como as supostas virtudes alardeadas. Marlon Brando, por exemplo, pediu a uma índia para representá-lo na entrega do Oscar, o que resultou num protesto histórico. Estava se lixando para o Oscar. Hoje, há quem leve o Oscar a sério, como se representasse mais do que um evento marqueteiro da indústria cinematográfica norte-americana. Vale lembrar que Chaplin jamais recebeu Oscar, Fellini recebeu tardiamente – pelo "conjunto da obra" –, quando já estava cansado de guerra. Alfred Hitchcock e Martin Scorsese estão no mesmo time, além de Stanley Kubrick, Akira Kurosawa, Greta Garbo, Kirk Douglas e Deborah Kerr. E John Wayne só foi contemplado quando se soube que estava morrendo.

Em resumo, é isto: tal como no período de decadência da cultura grega, tem gente confundindo virtude com trapaça e chutão pra frente com lançamento a sessenta metros de distância, o que já foi arte refinada nos pés de Gerson.

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