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No meio da noite, o homem acordou aflito, com me­­do de morrer. Vou morrer, pensou. Mas logo sor­­riu. Lembrou-se que era um obstinado hipocondríaco. Achava que estava à beira da morte desde os 17 anos, quando descobrira que era mortal. E o diabo é que, como todo hipocondríaco, tinha uma saúde de ferro.

No entanto, dessa vez a coisa parecia séria. Sentou-se na cama. Uma dor no lado esquerdo, um pouco abaixo do ombro. Formigava? Ouvira dizer que ataque de coração costuma formigar. Bom, não seria um ataque fulminante; se fosse, já estaria morto.

Estava vivo. Era certo que estava vivo? E se, naquela escuridão, ele estivesse caminhando no tal corredor que leva à morte? Logo apareceria uma luz, ele caminharia em sua direção e... Bom, poderia ser uma experiência de quase-morte, disso também ouvira falar. O sujeito saía do corpo, flutuava no teto do quarto ou acima do telhado da casa, e, lá do alto, ficava espiando a si mesmo esticado na cama, a família e os médicos em volta, até que despencava das alturas e, num golpe seco, retornava ao seu corpo. Escapara por pouco.

E se o túnel não tivesse fim? Se a luz não aparecesse? Além disso, não estava flutuando.

Grudou o braço esquerdo junto ao corpo e tentou acender a luz do abajur com a mão direita. Não alcançou. Evitou fazer força e se levantar. Nunca se sabe. Esticou-se mais um pouco e conseguiu acionar o interruptor, mas a luz não acendeu. Apertou novamente. Nada. Olhou em volta, ou seja, percorreu a mais negra escuridão e viu apenas um minúsculo ponto brilhante onde imaginava estar a janela. O trinco, pensou. Está refletindo alguma luz, é isso. Agarrou-se àquele ponto luminoso, segurou o interruptor do abajur com a mão esquerda e o pressionou com o indicador da mão direita. A luz não acendeu.

Esperou. Quieto na escuridão, ele e aquele reflexo de luz na direção da janela. Já era alguma coisa. A dor agora parecia ardida, mas não formigava. A respiração quase se normalizara, mas ele sentiu uma opressão no peito. Foi quando lembrou que, ao acordar, sonhava que alguém batera uma porta com violência e ele reclamara:

– Cuidado com essa porta!

Fora isso. Em algum lugar, um transformador estourara, ele escutara o barulho – um soco seco no ar – e acordara assustado. Isso explicaria a queda de luz, que por certo retornaria logo. Explicaria também porque acordara sobressaltado.

Pronto. Estava tudo explicado. Ou mais ou menos explicado. O que aquilo tudo tinha a ver com a dor no peito, no ombro, com o formigamento? Apertou novamente o interruptor. Nada. Pensou em ir até a janela – poderia se guiar pelo minúsculo reflexo no trinco – e ver se faltava luz apenas no seu apartamento ou nos edifícios em volta. Mas desistiu: não seria esforço demasiado para quem estava sofrendo de um ataque de coração?

Preferiu ficar quieto. A luz já voltaria. Haveria uma luz.

Friccionou o braço, o ombro, o peito. A dor, afinal, era pouca, Talvez uma posição errada ao dormir. Dia desses acordara com o braço direito dormente. Apavorado, discou para a casa dos pais. Mas, quando o pai atendeu, percebeu que dormira deitado em cima do braço, fora isso. Desligou o telefone. Coitado do pai, pensou. Aliás, o pai não aprovava que morasse sozinho. Perguntava: e se te acontece alguma coisa? Ora, não vai acontecer nada, disse ao pai, pois naquela época ainda não sofria do coração. Mas quem disse que sofria do coração?

Ouviu um som seco, como se um estilhaço percorresse a casa de um lado a outro. Um tranco. A luz. Voltou. Estendeu a mão na direção do abajur e, como um náufrago, apertou o botão. A luz.

Ali estava o mundo, iluminado. Que bobagem, pensou. Quanta bobagem só porque acordou na mais absoluta escuridão. Sorriu. A dor e o formigamento sumiram. Ajeitou-se na cama, puxou as cobertas, mas, ao estender o braço para apagar a luz do abajur, recuou. Melhor deixar acesa.

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