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Ela entrou porta adentro dando passadas firmes contra o assoalho de tábuas largas.

– Bom dia!

Todos responderam com continências, exceto um rapazola que acabara de ser incorporado. Pretendendo ser gentil e desejando subir na carreira, ele a cumprimentou:

– Bom dia, senhora gerente.

Ela fulminou o rapazola e disse:

– Gerente, não. Gerenta. Com a, não com o. Entendido, rapaz? Gerenta!

A partir desse dia o rapaz, que aspirava chegar à alguma diretoria, começou a ser apresentado a outras mudanças ainda mais substanciais geradas pelo princípio segundo o qual todos os tratamentos mudariam de final o para a. Questão de gênero. É bem verdade que as mudanças só conseguiram atingir aqueles que eram funcionários da empresa ou que trabalhavam em organismos dependentes dela – quem era de outras empresas, nacionais ou estrangeiras, ou quem não dependia de seus favores, nem dava bola.

Seja como for, as coisas evoluíram. Certo dia, o rapaz, aplicado e obediente como sempre, entrou na sala da gerenta e a encontrou eufórica com as grandes transformações literárias e linguísticas que vinha implantando. Ele pediu licença e disse:

– Eles chegaram, senhora gerente.

Ela se levantou da cadeira, furiosa:

– Eles?!

– Eles, disse o rapaz, percebendo pelo tom da gerenta que cometera alguma besteira; emendou: Os novos funcionários.

– Elas não chegaram, então?

– Não... quer dizer, sim, senhora gerente. Elas também chegaram.

– Então não são "eles", que é masculino.

– Mas... – o rapaz engasgou.

Ela se aproximou dele e disse:

– Aprenda mais essa, meu rapaz. A dominação é tamanha que elas ficam escondidas atrás do eles. Eles acabam predominando. Ao chamar o conjunto de funcionários de eles você está dando maior peso ao masculino. E o feminino, onde fica?

O rapaz, talvez pela pouca idade, não soube dizer onde o feminino ficava.

– Pois fica eclipsado, declarou a gerenta.

– Eclipsada, corrigiu de imediato o rapaz, que era muito hábil em adulações e arriscando levar mais uma bronca.

Ela o olhou irritada, mas concordou:

– Boa observação. O elas fica eclipsada.

– Não seria "a elas fica eclipsada", senhora gerenta?

O rapaz lhe pareceu demasiado afoito. Mas estava certo, o patife. Ou não? O elas? A elas?

Ergueu um dedo no ar e declarou:

– Elus.

– O que é isso, senhora?

– O novo plural. Elas, eles, elus. Elas para designar agrupamentos femininos. Eles para agrupamentos masculinos. E elus para designar reunião de masculino e feminino. Portanto, fica decidido: "Elus chegaram". Correto?

– Ou correta, senhora. Afinal, a correção tem sido mais feminina do que masculina, não lhe parece? – o rapazola era insaciável em seu empenho de agradar.

– Não me confunda, rapaz. Correção pode ser também uma coisa masculina, ainda que raramente.

– Ou coisas masculinos, senhora? Quer dizer... acho que... Bom, se decidirmos que será coisas masculinos, devemos dizer coisos. Coisos masculinos.

E ali estavam os dois à beira de inventar uma nova língua. Seria um evento notável diante do qual todo o mundo civilizado se curvaria.

Empolgada, a gerente mandou o rapaz apanhar o notebook e ditou o primeiro texto daquela língua recém-inventada:

"Elus chegaram. U grupu (já que inclui mulheres e homens) era formadu por três homens e três mulheres...

– Não seria o caso de colocar as mulheres antes, senhora?

A gerenta deu mostras de se irritar com a interrupção, mas corrigiu-se:

"...formado por três mulheres e três homens. Elus traziam algumus coisus. Umas femininas: duas malas, uma pasta, uma bandeira. E coisos masculinos: três chapéus, dois camisos e um caneto. No entanto, por uma dessos coisos masculinos, os homens haviam esquecido o principal, os relatórios. (Relatório é coiso masculino, riu a gerenta pela primeira vez naquele dia.) Elus ficaram muito atrapalhados, mas por culpa – ela se perguntou: por que culpa deve ser feminina? – e emendou: mas por culpo deles."

Terminado esse ensaio de clara e definitiva (clara e definitiva são coisas femininas, como se sabe) separação e determinação de gênero, elus – a gerente e o esforçado rapaz – perceberam que não havia como continuar. Melhor seria fazer uso de duas línguas, não de uma só que tentasse superar as ambiguidades da língua tradicional. Uma língua para mulheres e outra para homens. Seria melhor. Trabalhariam nisso. Duas línguas.

– Mas, perguntou o rapaz, temeroso e perplexo (que são, diga-se, algumos característicos masculinos), isso não causaria uma grande confusão entre homens e mulheres?

A gerenta deu com a mão no ar:

– Ninguém vai notar. Elus nunca se entenderam mesmo.

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