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A recepcionista do dentista me atacou ao telefone, sem piedade:

– O senhor está sendo marcado para estar sendo atendido na sexta, mas, como o doutor vai estar fazendo uma cirurgia, ele está perguntando se o senhor poderia estar vindo na quarta. É que na quinta vamos estar fechados porque estará sendo feriado.

Interrompi:

– Calma, minha filha. Chega de gerúndio! Vou na quarta.

Ela reclamou com o dentista, furiosa comigo, ofendida com aquilo de gerúndio. "Algo a ver com sua genitora?" perguntou.

É mais uma militante do atual massacre à língua portuguesa.

Os leitores já notaram que de uns tempos para cá todos "constroem"? Viraram engenheiros. Acabo de ler num jornal a declaração de um político: "ajudei a construir este projeto". Andam construindo idéias, ações, intervenções, leis. Pelo resultado, nada entendem de cálculos e tijolos.

Dia destes bisbilhotei uma conversa entre professores universitários. Vira e mexe, um deles declarava que construíra alguma coisa. Um construíra uma ementa para a disciplina de Sementes. Outro era o construtor de um curso de Epistemologia, "construído no dia a dia com os alunos".

Aliás, a idéia de "construção" inclui o mito de que todos colaboram entre si, todos participam – ou seja, todos constroem. E, quando vão explicar como fizeram tal coisa, eles dizem:

– A gente sentou e construiu.

Claro. Ninguém mais se reúne, debate, analisa – a turma senta. Quem debate usa a voz, os gestos, a palavra – não é o caso de quem senta. Aristóteles, por exemplo, que costumava dar aulas caminhando, seria um fracasso nos dias que correm. Ele não sentava. Andava.

Quando eu, sempre desastrado, sugeri a um grupo – que estava sentado – que poderíamos discutir um texto de certo autor, um deles me disse:

– Precisamos sentar dia destes para discutir esta questão.

Eu embatuquei. Já não estávamos sentados? Não poderia ser agora?

Não. Para sentar-se é preciso marcar previamente. Como se vê, sentar não se resume ao ato físico – embora esta postura seja indispensável –, mas trata-se de uma programação, um projeto, quer dizer... algo que a gente... constrói.

Este uso de sentar é acompanhado pela mania obstinada de inventar ou abusar de verbos estapafúrdios. A onda começou com terceirizar. Pegou. Emendou no emprego obsessivo de oportunizar, dependurou-se no priorizar, o que acabou por disponibilizar a todos a oportunização de evidencializar a inicialização de uma nova palavração. Contar uma história virou contação. Não é um retrato na parede, mas como dói!

Falar nisso, chegará o dia em que não sentaremos mais. Cadeirizaremos. O cliente chegará ao dentista e a recepcionista apontará uma cadeira, dizendo:

– Cadeirize, por favor.

Todos os substantivos virarão verbos. E os verbos, substantivos. Nadar deixará de existir – aguaremos. E, aproveitando a tolice do inicializar, serão criados novos palavrões: começarializar, economizarializar, indicarializar etc. Nada mais será apagado. Será deletado que, como se sabe, quer dizer exatamente apagar.

Sem esquecer o indefectível "como um todo". Juro que li, em texto de astrônomo brasileiro badalado, uma frase que falava do "universo como um todo". Vejam só: o universo como um todo! Quem imaginaria, não é mesmo? Como um todo! Logo o universo!

Enfim, chegará o dia em que um pobre escriba, atordoado com a língua que burocratas e burros propriamente ditos inventaram, produzirá uma espécie de "Samba do Gerúndio Doido":

"Eustógio de Tal, executivo e analista corporativo, estava cadeirizado, pronto para sentar com vários colaboradores, quando foi obrigado a interromperializar a contação de uma história, pois tiros estavam sendo dados na rua em frente. Ele descadeirizou súbito, e, como um todo, abriu a porta. Nossa! exclamou. Teremos que estar adiando a construção de nosso relatório, obtemperou, pois só poderemos reinicializar a oportunização proposta após deletarmos nosso susto e priorizarmos nossa calmalização. E, estando dizendo isto, desmaializou em pleno corredor. Ou seja, chãolizou-se."

Quero registrar desde já que esta língua vai estar sendo um saco.

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