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Não me lembro quando. Foi num destes dias em que não há muito sol nem muita chuva, em que não se lê jornais nem se ouve rádio, em que o planeta diminui a velocidade em sua fuga desenfreada pelo espaço.

O fato é que, súbito, parado diante de uma janela – que pode ter sido o pára-brisa do meu carro –, me vi tomado por uma destas dúvidas que abalam todas as metafísicas possíveis e redefinem o universo em que vivemos: passarinho é bicho?

Não tenho nenhum preconceito contra bichos, como é sabido. Mas acho que entre pássaro e bicho há certa distância. Está certo que leão é bicho, barata é bicho, cachorro é bicho. Mesmo uma singela lagartixa é bicho.

O que não altera a natureza de nenhum deles. Um leão segue sendo nobre e valente, uma barata não passa de rastejante e repulsiva, um cachorro é divertido e meio doido. Mesmo a lagartixa é ágil e esperta. Para ser bicho não é preciso ser ameaçador. Lagartixa, por exemplo, é inofensiva, embora eu tenha um amigo chamado Douglas que não teme servir de segurança em bailões da periferia, mas que sai em disparada comprometedora diante da visão de uma lagartixa.

Nem se pense que acho que os pássaros são bons e os bichos são maus. Evitemos simplificações. Uma águia pode ser impiedosa. Mesmo um pardal ou um chopim têm a sua crueldade. Mas não me parecem bichos.

Assim, o que me passou pela cabeça desocupada naquele momento não foi algum privilégio para os pássaros em detrimento dos bichos, nenhuma hierarquia entre ser-bicho e ser-passarinho, mas sim uma incompatibilidade entre a palavra bicho e a criatura passarinho.

Os leitores experimentem o seguinte. Diante de um cachorro, pensem:

– Aquele cão é um bicho feroz.

Perfeito.

Ou então:

– Vejam que bicho preguiçoso é o gato.

Funciona.

Agora, tentem formular a seguinte frase:

– Um bicho passou voando pelo céu.

Não funciona.

Começa que bichos não voam. Podem ser até melhores do que os passarinhos, mas não voam. A palavra bicho lhes concede um peso tal que impede o vôo. Bichos podem rastejar, saltar, correr, andar, nadar – pois mesmo os peixes são bichos, descobri também –, andar de bicicleta, amar, escrever obras sensatas ou textos estapafúrdios. Mas não voam. Mesmo Santos Dumont, que pensava voar, não voava: quem voava era o avião que ele inventou.

Por isto fiquei durante todos estes anos com esta dúvida definitiva: passarinho é bicho?

Tenho aqui a meu lado um canário empalhado. Seu nome é Spala e sobre ele já escrevi uma crônica. Cantava que era um desassossego, improvisando frases musicais de um virtuosismo do qual, entre os homens, só Dizzy Gillespie foi capaz. Foi o meu principal amigo durante alguns anos. Teve muitos filhos, duas namoradas. Um dia, como os poetas, morreu sem maiores avisos. Fiquei numa solidão enorme.

Levei seu pequeno corpo de passarinho a um taxidermista e agora ali está ele a me olhar. Parece ameaçar um vôo, prestes a soltar seu canto em forma de jazz. Mas só na minha memória ou numa fita gravada que tenho comigo é possível ouvir a música que inventava.

Seria um bicho?

Se fosse, isto não diminuiria seu valor, é claro. Mas acho que não era. Era uma outra coisa, algo além ou aquém dos bichos, uma criatura que se livrou de ocupações menores, do chão, do peso. Que inventava melodias. Que não se disciplinava a nenhuma partitura. Liberto de todas as determinações naturais e sobrenaturais.

Eis o que tento dizer: é um passarinho que passa voando pelo céu, não um bicho.

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