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Aqui no boteco do cego Tião, tem um sujeito, vindo das Minas Gerais, que se chama Miltinho – ou melhor, Miltin.

Pois é duro conversar com o Miltin. A gente conta um causo, inventa uma história qualquer – já acrescida das mentiras naturais de quem conta causos – e o Miltin nem se abala. Coça a barba, desce a mão esquerda pelo pescoço, como se o espichasse para baixo, e lasca uma outra história que derruba a nossa. Na história dele, o causo é mais surpreendente, mais mirabolante e, acima de tudo, revela que ele dispõe de informações com as quais jamais sonharíamos.

Foi o que se deu quando Paulinho Ventura, atleticano alucinado – alucinado porque nos últimos anos só consegue comemorar o não-rebaixamento do time – e Carlão Borracheiro – que é coxa e, coitado, nem isso pode comemorar – estavam rasgando conversa sobre futebol. É bom dizer que os dois só falam de futebol do Rio de Janeiro para cima ou de Santa Catarina para baixo. Atletiba é tabu. Não querem arriscar a velha amizade.

Por isso, entre cervejas e copos de cachaça, sentados na mesa ao lado do balcão onde o cego Tião dormitava, ficaram retirando do baú algumas jogadas clássicas de Pelé, que era genial até quando não fazia o gol esperado. Aquele em que driblou o Mazurkieviski sem tocar na bola, o outro que chutou do meio do campo. E o gol que não fez na Inglaterra? Meu Deus, que cabeçada! E a defesa do Banks! Ninguém jogou futebol assim, disse um. Nem pensar, disse o outro.

Foi quando chegou o Miltin.

A chegada de Miltin obedece a um ritual. Estaciona – é o termo – ao lado da mesa, olha em volta, dá um sorriso maroto e pergunta se é bem-vindo. Não é, ele sabe, mas nem espera pela resposta. Vai sentando.

Pois o Paulinho, rapaz gentil, querendo melhorar o ambiente, disse que estavam lembrando das façanhas de Pelé, aliás nascido no mesmo Triângulo Mineiro de onde viera Miltin. Ele mirou um e outro, alisou a barba, deslizou a mão pelo pescoço e disse:

– E daí? Que tem o crioulin?

Carlão ficou cabreiro:

– Que crioulin, sujeito? Pelé. O maior jogador do mundo!

A mão esquerda de Miltin subiu e desceu ao longo do pescoço:

– Isso porque vocês não conheceram o primo dele.

– Que primo?

– Tié.

Paulinho cortou:

– Me desculpe, mas tem Tié nenhum no futebol brasileiro.

– Cê é que não viu. Os dois começaram num campinho ao lado da minha casa. Tié era muito melhor do que Pelé. Chutava com as duas, cabeceava, driblava feito capeta.

– Pelé também, não chateia – disse Carlão, irritado.

– Claro, aprendeu com o Tié.

– Não acredito.

– Azar seu, sô. Era muito melhor, nem comparação. Sabe gol de curva, no cantinho? Fazia um atrás do outro.

– Me diz uma coisa. – foi a vez de Paulinho Ventura – Onde foi parar esse Tié?

A mão na barba, no pescoço, Miltin deu um tempo e explicou:

– Foi comprado pelo Santos quando o Pelé ainda se chamava Gasolina. Fez o maior sucesso nos treinos, deixou o Zito sentado no campo várias vezes, meteu uma bola no meio das pernas do Gilmar.

– Tá bom. E onde foi parar a figura?

– Bão. É que ele, além de jogar mais do que o Pelé, era um crioulo muito mais bonito. Se enrabichou com a mulher de um dirigente, o cara era da pesada, acabou com o futuro dele no futebol.

– Deixa de conversa, Miltin.

– Conversa nada. Foi quando foram buscar o Gasolina. Até isso ele deve ao Tié.

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