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Para mim, os desenhos do Glauco eram uma surpresa só. O que mais me fascina neles é a agilidade do traço. Curiosamente, a mesma agilidade caligráfica que fazia o fascínio dos desenhos do Henfil, agora filtrada por um traço racional, preciso, enxuto. Glauco seria a mistura ideal de Henfil e Nássara, se não estou dizendo bobagem. Uma geometria rigorosa e não-euclideana de todos os gestos e movimentos. Ele parecia ter superado a divisão entre o racional e o irracional. Se os traços eram limpos e retos, o conjunto era móvel, enlouquecido, instável. Geraldão com um copo de uísque, uma seringa, alguns copos, um cálice e, além disso, com o pirulito em riste. E as pernas que se multiplicavam, três, quatro, a bunda e o umbigo picassianos em solução cubista, disparando o personagem de um lado para outro até a cambalhota e o mergulho finais, de ponta cabeça, no chão que se abre num buraco estrelado.

Outro fascínio era a síntese, a arte por excelência de todo bom cartunista, que Glauco dominava com uma maestria notável. Como tantas coisas, tantos gestos, podiam formar uma unidade tão precisa?

Vinha então o golpe final: um direto de direita. Todo mundo repete – e não se trata de uma daquelas unanimidades burras – a frase de Cortázar segundo a qual no romance o escritor vence por pontos e, no conto, por nocaute. O mesmo se dá com as tiras. Glauco nocauteava que era uma beleza. Três quadrinhos e era um golpe só.

Síntese que se revelava também na natureza dos personagens, universais e únicos: a mãe, a boneca inflável Sharon Stone 1.8, Zé do Apocalipse, os Etês, Netão. Todos assumidos e robustos neuróticos, criaturas obsessivas que se sabiam obsessivas e que faziam disso um trampolim para vencer as aflições da solidão: a sexualidade reprimida, em Geraldão e na oferecida dona Marta, o ciúme rancoroso e doentio do casal Neuras – ela saindo para uma farra e ele se mordendo de ódio. Mesmo os Nojinskis, voando em seus tapetes, eram marcados pelas mesmas obsessões estapafúrdias e doidas, rumo ao próximo desastre. E Edmar Bregmam, o cineasta que jamais terminou um filme, revelando angústias existenciais ao cão Fox e ao garçom Claquete.

O absurdo era o companheiro de todos os personagens, um clima que pareciam partilhar com seu criador. Esse universo das incompatibilidades e choques, fosse dos ciúmes entre marido e mulher, das neuras entre mãe e filho, das correrias entre o traficante e o policial, era o pano de fundo de todas as batalhas, travadas em quadrinhos fulminantes.

Glauco tirava dessas situações o melhor humor. Dava uma cambalhota ao longo da tira e concluía com um saldo positivo: a vida era diversão, arte, farra, prazer. Apesar dos golpes de enceradeira e das neuras do amor. Para Glauco, o prazer e o humor eram instrumentos que permitiam superar o absurdo e a dor. Superação à maneira de Nietzsche ou Albert Camus, talvez. Devemos acreditar que, tal como Sísifo, Dona Marta, solteirona faminta de amor e sexo, exibindo desabusadamente seu corpo e seus desejos, era feliz. Não era amada nem desejada, mas mostrava a todos que queria amor e sexo – e isso quase bastava: ela ao menos sabia o que queria. Como não escondia as razões de seus conflitos, de alguma maneira era feliz e ria dos ascensoristas, dos colegas de trabalho, dos executivos em pânico diante de seus seios, dos patrões alarmados que ela tentava inutilmente seduzir. Enquanto isso, Geraldão vivia seu sexo solitário sem desistir, espécie de Sísifo da frustração sexual, reiniciando sempre. Recomeçava a cada dia, sobretudo se fosse um domingão. Lá estava ele, animadíssimo, pronto para uma nova investida, teso e sorridente, enquanto a enceradeira materna não vinha arremessá-lo através da janela.

Vencer a repressão – aquela que está fora de nós ou aquela que trazemos em nossas pobres cabeças, se há alguma diferença entre as duas – eis o segredo da farra humorística de Glauco. Se não era possível satisfazer o desejo por inteiro, que ao menos se fizesse um brinde às fantasias sexuais, amorosas, políticas, humanísticas etc.

Agora, cá estamos sem o Glauco, vítima dessa avalanche de violência que parece se alimentar de sua própria insanidade. Ficamos mais pobres, mais solitários, mais sofridos, mais perdidos em neuroses. Diante dos desastres do amor e da vida, quantas vezes nos faltará o terceiro quadrinho com seu direto de direita e sua cambalhota salvadora?

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