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Como qualquer brasileiro, volta e meia me vejo humilhado por uma dessas regrinhas gramatiqueiras, sobretudo aquelas que governam – ou pretendem governar – a crase. Embora, como disse Ferreira Gullar, a crase não tenha sido feita para humilhar ninguém, a verdade é que ela não perdoa.

Pois lá estava eu martelando o teclado quando escrevi: "tijolos a vista". Embatuquei, paralisado de horror diante da questão: leva ou não leva crase? Achei que ficava melhor sem crase e fui em frente. Mas alguém me advertiu: leva crase. Pronto, estava instalado mais um drama gramatiqueiro.

Resolvi recorrer ao mais onipotente, onipresente e onisciente dos recursos enciclopédicos do século, o Google. Naveguei pelos sites dedicados à gramática e minha confusão só fez aumentar. Aqui se argumentava que não havia necessidade de crase, ali, no entanto, alguém exigia a crase e dava exemplos sábios. Mais adiante, alguém argumentava: é facultativo nesse caso.

Deixei sem crase. Mas, ameaçado por aquela humilhação que a gramática faz pairar sobre nossas pobres cabeças, busquei socorro escrevendo um e-mail ao meu amigo Carlos Alberto Faraco, rapaz sabedor de muita lingüística. Perguntei a ele: vai ou não vai?

O Faraco respondeu com aquele humor inconfundível e me explicou que segundo alguns, vai; segundo outros, não. Outros dizem que o uso nesse caso é facultativo. Conferia com minha pesquisa na rede, portanto. Mas o Faraco acrescentou que "sempre tem aquele teu amigo pentelho metido a linguista (lembra??) e não vale a pena se encher o saco com picuinhas. Por isso, recomendo que use com a crase. Se alguém protestar, você diz: ‘Caro mio, é assim que está no Houaiss’. E o assunto se encerra sem delongas e milongas".

As sábias palavras do meu amigo me aliviaram, mas criaram outro problema, talvez maior. Súbito, uma palavra me veio à mente: facultativo. O uso é facultativo. Lembrei que, quando dirigi a editora da UFPR, enrascada na qual o Faraco me meteu, sempre que se aproximava um feriado pela proa, algum funcionário vinha conversar comigo:

– Trabalhamos na segunda?

– Sim, eu respondia.

– Mas é facultativo, surpreendia-se o funcionário.

Eu, massacrado por anos de exercícios de lógica, explicava:

– Bom, nesse caso, podemos trabalhar ou não. Que tal trabalhar?

E o funcionário, desconsolado:

– Mas, professor, é facultativo...

Foi quando eu entendi que, na cultura brasileira, o facultativo se torna sempre obrigatório. A crase facultativa é uma ficção. Para não se chatear, é melhor usá-la.

Vejam, leitores, o caso do voto obrigatório. O voto é um direito democrático. Sendo um direito, cabe a cada cidadão exercê-lo ou não. Por exemplo: temos o direito de ir e vir, mas ninguém é obrigado a ir e vir, o que se chocaria com o próprio direito citado, que implica a possibilidade de ficar parado. Temos o direito constitucional à felicidade, mas ninguém pode ser obrigado a ser feliz. Adotamos o direito à propriedade, mas há quem se lixe para ele. E o direito à liberdade religiosa, por acaso nos obriga a aderir a uma religião? Temos até mesmo direito à vida – mas ninguém é obrigado a viver e alguns, infelizmente, renunciam a ela voluntariamente. Deveriam ser obrigados a não renunciar? Mas como punir os que suicidam?

Vejam a confusão causada a eleitores que moram no exterior. Não são obrigados a votar, mas, aqueles que se inscreveram para votar e não o fizeram, não poderão renovar seus documentos. Leis estapafúrdias geram consequências estapafúrdias. Por exemplo: para votar, servem vários documentos, menos o título de eleitor.

Eis aonde cheguei, partindo de meus sofrimentos com a crase, com funcionários públicos e com leis que nos tratam como criaturas despidas de cérebro.

Pensando bem, voto obrigatório só serve para a formação de currais eleitorais, o que, não sendo direito de ninguém, deveria ser proibido. Da forma mais simples: tornando o voto apenas um direito. Facultativo, portanto. No bom sentido.

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