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Apreciava os rostos bonitos. Tom: nariz reto, pele branca atravessada pela barba clara e curta, olhos azuis arredondados. Augusto: nariz reto, tez morena cravada de pelos castanhos como as íris, queixo largo. Rodrigo, Pablo, Davi... Tinha uma predileção nada sutil por rostos harmoniosamente desenhados, sobretudo por narizes de talhe alinhado e proporções discretas. Maxilares, se fosse a ceramista a moldá-los em suas mãos, só os faria harmonicamente angulosos. A simetria: um deus regendo o universo.

Seu inverso, no espelho, não tinha paralelos à direita e à esquerda. Em narinas delicadas culminava o desvio de septo agravado pelo imperioso adunco de origem romana. Olhos de escorpião árabe, próximos e arqueados pelas sobrancelhas negras, que às íris cor de amêndoa cabia serenar. A boca estreita, o pouco queixo. Ela tardou 30 anos até enxergar no seu espectro bidimensional uma beleza particular.

Só o fez depois, muito ou pouco depois, de conhecer um rapaz com traços de modelo de anúncio de ótica. Era aquela: a perfeição. Que rosto! Nada escapava do seu devido lugar. Tinha vontade de medi-lo centímetro a centímetro com as pontas dos dedos para entender pelo tato a harmonia das formas. Mais. Desejava enquadrá-lo. Sim, aquele rosto pedia para ser emoldurado. Não, não: a estante. Era um rosto magnífico, para se pôr na estante! Clamava por exposição como um busto em gesso imobilizado pelo classicismo. Pensou que essa era finalmente a imagem que ao moço faria justiça, o rosto como um bibelô.

Cansou-se em três dias, logo descoberta a assepsia da beleza. Quantas vezes olhasse, veria naquela a mesmíssima cara. Por ela corria as pupilas numa lisura de quem não se prende a nada, porque nenhuma imperfeição havia a lhe despertar o interesse. A simetria obediente se deixava desvendar sem resistência, desavisada de que uma vez desvendado o mistério da face de um ho­­mem. o enigma do universo se desfacela em tédio. Amou os imperfeitos dali em diante.

Francisco: a testa larga e proeminente sobre olhos inexpressivos não condizia com a gengiva rosada nem com os dentes pequenos, cobertos por lábios que se descerravam em excessiva doçura. Cinco anos passou ao lado de João sem decifrar a lógica de um nariz de bordas arredondadas, que a faziam rir, pregado no centro do rosto de contornos retangulares e maxilar sólido, enquanto a boca transbordava carne e os olhos mal se abriam.

As linhas que ora a intrigam estampam o rosto de Miguel. Por dias não soube dizer se a agradavam, olhava-o, olhava-o. E de tanto olhá-lo tomou-se de afeição pela face a mapear. Perde-se inteira a fitá-la. Nos cantos dos olhos dele, o breve roçar das pálpebras dobradas. A boca a desnorteia, vem num sorriso gratuito, tal menino serviente, mas acaba a arcada e o sorriso que deveria cessar insiste num rasgar que avança desviante para o alto, afiado e desafiante.

A beleza que se desvela tímida é aquela que perdura.

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