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 | Renata Surian/Gazeta do Povo
| Foto: Renata Surian/Gazeta do Povo

De manhã, não muito cedo, acordar para tomar um café fresco com um pedaço de bolo feito por alguém que se importa muito com você é um daqueles momentos em que você pensa: "A vida pode ser boa".

Aconteceu comigo hoje e tem a ver com um livro que encontrei por acaso. Uma escritora francesa, de nome Françoise Héritier, recebeu a carta de um amigo médico em que ele dizia estar "roubando" uma semana de férias. Ela, que é antropóloga, ficou impressionada com a frase e se questionou: "Quem estava roubando o quê?".

Na resposta para o amigo, ela escreveu sobre como, trabalhando demais, vivendo à beira de um esgotamento físico, ele corria o risco de perder outras coisas igualmente importantes (ou tão importantes quanto o trabalho, que, afinal, pode ser recompensador).

"O senhor escamoteia todos os dias o que gera o sal da vida", escreveu Françoise. A referência dela não é só os grandes eventos, obviamente valiosos pelo poder transformador que carregam — conseguir um emprego que se deseja muito ou casar ou ter filhos —, mas sim os eventos banais. Aqueles que passam despercebidos na maior parte do tempo. Os que você precisa prestar atenção para ver os detalhes. "Deitar em lençóis recém-trocados", é um exemplo dado por madame Héritier.

"Estremecer ligeiramente de frio ao cair da noite", "terminar de lavar uma grande quantidade de louça", "acender um fósforo" e assim ela segue por dezenas de parágrafos...

A carta ao amigo acabou virando um livro, pequenininho mas com um significado enorme, O Sal da Vida (Editora Valentina, 112 págs., R$ 19,90). Ele saiu aqui no ano passado, está agora na quarta edição e é genial. Apesar de a embalagem pesar a mão no discurso de autoajuda — "o segredo da felicidade", diz a contracapa do livro —, Françoise é mais complexa e mais francesa que isso.

Em meio a momentos bons, felizes, ela coloca outros mais sombrios e difíceis. Como falhar em um teste, perder um amor ou testemunhar uma tragédia.

A genialidade está no fato de a autora dizer que aquilo "que faz a vida valer a pena", como diz o subtítulo brasileiro, não é só felicidade, prazer, conforto e sucesso. Um tanto do sabor vem dos perrengues, das derrotas e das tristezas. Porque tudo isso tem a ver com estar vivo.

"Tomar uma cerveja num terraço, num belo fim de tarde" é uma experiência boa. "Ter um trabalho insano com algo que acabou não dando em nada", não. Ambas as situações aparecem na lista da francesa.

Até pouco tempo atrás, meu pai não sabia soletrar "problema" (achava que era "poblema", sem o erre), mas ele sempre teve uma lucidez incrível para lidar com as dificuldades da vida. É um dos homens mais sábios que conheço.

Um dia, ele me disse: "A vida é feita de momentos". Nessa lógica, alguns são bons, outros, ruins. E nenhum deles dura muito. Eu era um piá quando ouvi a frase e demorei um para entender, de verdade, o que ela significava.

Dessa observação do meu pai, surgiu uma das expressões favoritas da família. Quando estamos felizes durante um almoço gostoso ou porque a conversa está boa, a gente olha um para o outro e, servindo mais um pouco de vinho ou pedindo outra xícara de café, diz: "Só para prolongar o momento".

Segundo madame Héritier, uma das coisas mais importantes é, na página 35, "ter consciência da natureza fugaz das coisas e da necessidade de aproveitá-las".

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