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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Havia tanto a ser dito, mas restou-lhe apenas o silêncio.

Descobriu, naquele instante, quando se viram pela última vez, que as palavras haviam acabado. Os bolsos estavam vazios. As gavetas, também. Nem nas latas de biscoitos, onde a avó costumava guardar o dinheiro para as compras miúdas, conseguiria encontrar a expressão exata, a fala.

Nada que ele pudesse imaginar, e enunciar, traduziria o que se passava em seu peito. Apenas o olhar vazio, porém repleto de significado, dizia algo. Acompanhado pela certeza de que o tempo se esgotara e o melhor a fazer era partir antes de iniciar uma conversa.

Há momentos na vida em que as alternativas se esgotam. Tantas foram as tentativas, as mãos estendidas, os apelos emitidos das mais diversas formas, cifrados ou explícitos, sem qualquer resposta, que zarpar deixara de ser uma alternativa. Era a única escolha para o marinheiro que perdera as graças do mar. Daquele mar que não era mais seu há anos, mas cujas ondas furiosas ele insistia em enfrentar como se delas precisasse para continuar vivo. E por muito tempo precisou.

Frente a frente, descobriu que a pessoa diante dele era apenas um simulacro, um espectro do personagem que por tantos anos povoara seus sonhos e devaneios. Não sabia mais quem estava ali. Fazia pouca diferença a essa altura. A não ser pelo choque de realidade, a pior de todas as lições. A mais eficiente delas, também.

Sem se despedir, a não ser por um discreto baixar de olhos, como num lamento conformado, ele deu-lhe as costas (quem diria!). Não tinha a intenção de fazer desaforo. Não teria sentido. Apenas sentiu a urgência de constatar que, se ali ficassem, o silêncio se tornaria uma foice. A morte começaria a exalar odores.

A magoa, como numa banheira cheia cujo ralo é destampado, foi escoando, primeiro devagar e depois em redemoinho. Ficaram, colados à porcelana, alguns rastros de sujeira, resíduos do longo tempo em que a água esteve parada, em suspensão. Nada que uma escova e sapólio não resolvessem.

Cada passo dado dali em diante, sabendo que nunca mais voltaria a bater àquela porta, fazia com que seu coração disparasse. A nuca latejava. Se não fosse ridículo, patético mesmo, correria, ganharia a rua, cheia de pedestres, com os braços abertos, como se fosse levantar voo. Mesmo que não soubesse aonde desejava chegar. Não havia pensado nessa parte. Preferiu fechar os olhos e lembrar pela última vez de um momento perdido, daquela despedida desajeitada na rodoviária. O início do fim. E há tanto tempo.

Agora restava-lhe, presa entre os dedos da mão fechada em forma de soco, uma história a ser escrita, enquanto outra se dissolvia na água que escorria pelo ralo da banheira num pequeno ronco. Buzinas o lembravam que estava vivo (estava?). E ele voltou a olhar no bolso da camisa. Nada. Revirou os da calça. Nenhuma palavra sequer que pudesse usar para explicar o que significava estar livre daquele peso numa espécie de luto tardio.

E pôs-se a caminhar. Por instinto, ainda que hesitante. Rumo a algum lugar.

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