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Montanhas em Bergen, na Noruega, onde se passa parte da ação do livro Minha Luta | Svete/Creative Commons
Montanhas em Bergen, na Noruega, onde se passa parte da ação do livro Minha Luta| Foto: Svete/Creative Commons

Ninguém mais presta atenção em nada. Sei que exagero, mas essa é uma impressão verdadeira. Talvez porque trabalho numa redação de jornal em que todo mundo tenta lidar com um milhão de coisas ao mesmo tempo.

Fora do jornal, vejo gente almoçando enquanto mexe no celular e assiste à tevê, dirige falando ao telefone enquanto fuma, ouve música e manda mensagens ao mesmo tempo em que caminha pela rua.

Cientistas americanos disseram que a internet deve mudar a maneira como a pessoa raciocina definitivamente e isso já está em andamento. Em vez de mergulhar numa atividade específica, ela vai surfar por várias simultaneamente. É isso que vejo os outros fazerem – estão muito ocupados com vários compromissos, mas não se concentram em nenhum deles.

Talvez seja um cacoete de jornalista, mas gosto de quem enfrenta a correnteza ou olha para ela com desconfiança. E Karl Ove Knausgaard é um desses homens lúcidos, capazes de mostrar e de explicar coisas a respeito da vida e do mundo que você não via ou não entendia.

Um dos livros dele, Minha Luta (Min Kamp, no original), foi traduzido do norueguês para o inglês no ano passado, ganhando uma resenha na revista The New Yorker. James Wood, o crítico literário em questão, tem um livro genial publicado no Brasil, Como Funciona a Ficção, pela Cosac Naify. O entusiasmo da resenha foi contagiante. Agora me sinto em dívida com James Wood.

Em Knausgaard ("quenausgórd" foi a pronúncia que deu para entender em vídeos na internet), o que mais me impressionou foi, precisamente, a atenção que ele presta às coisas triviais do cotidiano, mas não só a elas.

Minha Luta é o primeiro volume de uma série de seis livros autobiográficos. A morte do pai detonou em Knausgaard o impulso de pensar e repensar tudo: sua relação com o pai e com a família, a experiência de casar e de ter filhos, o trabalho, tudo.

No percurso, ele acabou expondo a si mesmo muito mais do que um norueguês acharia aceitável. Antes de publicar o volume um, mandou cópias para todas as pessoas que eram citadas no livro. Quase todas ameaçaram processá-lo, então ele trocou os nomes. Knausgaard, a mulher dele e o irmão são os únicos que aparecem com os nomes reais. A família queria preservar também a memória do pai, mas o autor se recusou a trocar o nome. Então ele usa apenas "pai", ou "ele".

Os seis livros se tornaram o maior fenômeno literário da Noruega em qualquer época – venderam 500 mil exemplares num país de 5 milhões de habitantes.

O modo como Knausgaard escreve sobre ações banais mostra o que há de memorável nelas. Pode ser o ato de fazer um chá ou o de limpar a casa em que o pai viveu os últimos anos, bebendo até morrer.

A abertura do livro é fulminante. A primeira frase diz: "Para o coração, a vida é simples. Ele bate enquanto pode. E então ele para". As linhas seguintes explicam o que acontece com um corpo morto. Knausgaard descreve incansavelmente. O crítico James Wood identificou essa força como uma "incansabilidade". Fiquei surpreso de ver que a palavra é dicionarizada.

Parece uma tática boa contra uma época em que ninguém se concentra em nada. Incansabilidade.

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