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| Foto: Arquivo pessoal

Fotografias turvas, embaçadas ou tremidas sempre me pareceram mais autênticas do que imagens corretas. É como se as imperfeições compensassem a imobilidade do papel e fossem mais próximas da realidade, que não é bem enquadrada e, com frequência, também não é nítida.

Em imagens de guerra, as que mais me impressionam são as nervosas, aquelas que parecem sujas e são às vezes difíceis de entender. Um borrão no meio de um campo branco que, na verdade, mostra um soldado sofrendo para avançar alguns passos dentro d'água.

Robert Capa (1913-1954), um fotógrafo de guerra talentoso (cobriu cinco conflitos e morreu enquanto enfrentava o sexto), escreveu um livro de memórias e o chamou de Ligeiramente Fora de Foco, em parte porque os trabalhos mais famosos que fez não eram "perfeitos". O livro saiu no Brasil pela Cosac Naify no ano passado e, quando o peguei para ler, senti o entusiasmo de talvez encontrar ali uma explicação possível para o meu gosto por imagens desfocadas. Capa não elabora teorias a respeito de imagens imperfeitas, mas, ao escolher o título das suas memórias, é como se assumisse a ausência de foco – o erro – como um elemento capaz de definir a sua vida profissional e também a íntima.

Posso ter desenvolvido esse gosto estranho porque os meus álbuns de família estão cheios de imagens ruins que retratam momentos bons: uma das poucas lembranças da bisavó, o registro de um parque de areia que não existe mais, a família inteira participando de um almoço de domingo. Tudo fora de foco. O problema técnico consegue, de certa forma, humanizar o registro do momento. Lembra inclusive que há alguém atrás da câmera (o salafrário que não bateu a foto direito).

Fotografias posadas parecem quase sempre artificiais, falsas, obrigando os retratados a segurar um sorriso por tempo demais, mal disfarçando os olhos arregalados pelo medo de piscar bem na hora do clique. É um instante fabricado para a posteridade e que só vai existir desse jeito: não é um momento gravado pela fotografia, mas sim causado por ela.

Flagrar alguém no meio de uma gargalhada espontânea ou num momento em que pensa estar sozinho – seja olhando a paisagem ou tirando meleca do nariz – rende fotografias muito mais valiosas. Se forem borradas, melhor ainda, mas não adianta tirar fora de foco de propósito. Eu já tentei e não é a mesma coisa.

A Casa Andrade Muricy exibe até o dia 27 uma exposição (Sinopse) do artista alemão Gerhard Richter. Fazem parte dela as "pinturas fotográficas", um processo batizado de cibachrome por causa do papel fotográfico que usa, desenvolvido para se fazer ampliações a partir de slides. Sem ele, fazer uma fotografia de papel usando um diapositivo é bem mais trabalhoso.

Os quadros que Richter fez com o cibachrome pendem entre a fotografia e a pintura, as imagens são embaçadas, como se você estivesse olhando para elas através de um vidro espesso. "Betty", o retrato da filha de Richter usando um casaco estampado vermelho e branco enquanto olha para trás é misterioso sem ser ameaçador. A foto em preto e branco de um tio fardado já não parece tão amena, o uniforme faz pensar em nazistas ainda que ele não seja um (?). E um nazista de quepe sorrindo para uma foto vai ser sempre perturbador. As obras de Richter são estranhamente familiares e a profundidade causada pela falta de nitidez dá vontade de olhar para elas por tempo indeterminado.

A fotografia que ilustra este texto não é de Richter. Faz parte do acervo do meu tio e mostra um grupo de homens voltando da pescaria em algum momento dos anos 1950. Eles usam calças sociais, camisas, coletes e chapéus, mostram o resultado do passeio pelo rio que deve ser o Tibagi. O homem na margem, à esquerda, está descalço e tem as mãos na cintura enquanto olha os outros trabalharem. É o meu bisavô e talvez você não consiga perceber pela impressão do jornal, mas ele está ligeiramente fora de foco.

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