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Não tem coisa pior do que viver assombrado pelo acaso, com aquela sensação de que, a qualquer momento, algo de ruim pode acontecer de forma aleatória. Um dos filmes mais cotados a levar alguns Oscars no próximo 2 de março, Gravidade se vale desse terror num momento de crescendo dramático, em que a médica Ryan, interpretada por Sandra Bullock, conta ao colega (George Clooney) que sua filha de quatro anos morrera ao cair e bater a cabeça no parquinho da escola. A bizarrice de uma confissão em pleno espaço não atenua o choque do contato com o trágico.

Para os antigos gregos, a explicação para essa sujeição do ser humano ao inesperado e incontrolável estava no destino determinado pelos deuses. E eles usaram formas extremamente poéticas de contar a história do mundo a partir desse prisma, o que resultou em tramas impressionantes. Há mulheres emparedadas, gente que fura o próprio olho, aves bicando o fígado de um sujeito para sempre e assassinatos a rodo.

No texto considerado por muitos a principal tragédia clássica, Édipo Rei, de Sófocles, o protagonista precisa viver um processo de autoconhecimento para que a crise por que passa seu povo chegue ao fim. Nada acontecia por acaso.

Em tragédias posteriores, Shakespeare (1564-1616) também deu a seus condenados à morte uma trajetória de aprendizado e o poder de apaziguar crises nacionais, como quando Hamlet coloca a Dinamarca de volta nos eixos após o assassinato do pai. Mas paga com a vida e entrega a coroa à Noruega. Nesse teatro chamado elisabetano (graças ao apoio da Rainha Elizabeth), o herói já tinha "poder de veto": vivia um misto de sina e livre arbítrio.

Após um período transitório em que os palcos europeus conheceram um drama burguês, o norueguês Henrik Johan Ibsen (1828-1906), mais conhecido por seu poema dramático Peer Gynt, inovou ao criar "tragédias liberais", na denominação do crítico Raymond Williams. Suas peças frequentemente alinhavam um drama em que o herói recusa o papel de vítima: seu heroísmo não está mais no sofrimento por que passa, e sim na legítima aspiração por mudanças.

São personagens que buscam a autorrealização acima de tudo, o que envolve a quebra de grilhões, sejam eles a hipocrisia da sociedade ou até um casamento ruim. Alguns, como Nora (de Casa de Bonecas), alcançam essa percepção tarde demais. Nesse caso, uma mãe de família infantilizada abandona o lar para descobrir-se. Foi uma tragédia para os padrões da época, e o espetáculo fez o nome de Ibsen se destacar no meio teatral europeu.

Outros personagens seus já partem como figuras separadas de seu tempo. O médico Stockmann, de Um Inimigo do Povo, se levanta contra o acobertamento de uma crise sanitária e é massacrado pela opinião pública, para terminar declarando que "o homem mais forte do mundo é aquele que está mais sozinho". Talvez seja o texto mais autobiográfico de Ibsen, que escreveu a peça como reação a seu linchamento social após o escândalo causado por Espectros.

Voltando ao ponto em que deixamos Sandra Bullock suspensa em gravidade zero, é interessante como o filme começa com a crua dor da perda trágica, mas termina repleto de simbolismo, após a trajetória de crescimento da protagonista. Não, ninguém aguenta uma visão de mundo endurecida pelo acaso em que não haja espaço para a redenção.

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