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 | Irinêo Baptista Netto/Gazeta do Povo
| Foto: Irinêo Baptista Netto/Gazeta do Povo

Entrei pela primeira vez no apartamento onde moro hoje numa tarde de sol forte. Depois de atravessar a porta de entrada e de ver a sala iluminada, fechei negócio com o corretor sem pensar muito. Talvez tenha sido impulsivo.

A expectativa de morar na Boca Maldita me animou. É perto do trabalho e com um aluguel razoável para um mercado imobiliário insano. Eu estava há tempo demais num cubículo sombrio e úmido. Parecia uma caverna e queria sair dela, apesar de ter desenvolvido um vínculo estranho com o lugar. Era meio aconchegante e me obrigava a trabalhar bastante porque eu ia da escrivaninha para a cama com um passo – e isso não é força de expressão.

A caverna funcionaria bem como escritório, mas não dava para ter uma vida inteira dentro dela. Queria uma casa. Não casa, o imóvel, mas um lar.

Conhece a sensação que algumas pessoas têm quando passam um tempo fora, numa viagem, ou ao fim de um dia longo de trabalho, e voltam para casa? Quando basta colocar a chave na fechadura para se sentir bem? É isso.

Ter essa percepção é mais complicado do que arranjar um imóvel para morar.

Em Paris É uma Festa, as memórias do Ernest Hemingway (1899-1961) sobre os dias miseráveis que levou na capital francesa, o escritor conta que mal tinha dinheiro para o vinho e morava em muquifos, mas, por pior que fosse o quarto sem janelas, dava um jeito de se sentir em casa porque tinha os seus livros e quadros.

Faz cinco meses que ocupo o apartamento ensolarado perto do trabalho e as paredes continuam vazias, mas os livros foram a primeira coisa que tirei das caixas para arrumar.

O lugar é bom, apesar de todos os problemas de encanamento imagináveis numa construção com mais de meio século de idade.

Dois dias depois de assinar o contrato com a imobiliária, descobri um vazamento no banheiro. O estranho é que fiquei fascinado pelo problema, o primeiro de vários que surgiriam lentamente, como se o prédio fosse uma criatura endiabrada num filme do Roman Polanski. Vendo a minha reação, um amigo me perguntou num tom de psicanalista: "O que significa o vazamento para você?".

Na lata, respondi: "O vazamento é a solidão". Então elaborei teorias disparatadas sobre o banheiro representar o mais íntimo dos cômodos de uma casa, aquele que lida com os aspectos mais elementares do ser humano.

"Um banheiro com problemas é a intimidade perturbada pela solidão", anotei no verso da nota fiscal da torneira nova que precisei comprar.

Os azulejos são verde-muco e paguei caro por uma tinta própria para pintá-los de branco, mas não adiantou. A umidade causada pelas infiltrações fez a tinta descascar rápido nas paredes dentro do boxe. No mesmo dia em que o apartamento terminou de ser pintado, começaram a surgir manchas no teto acima do chuveiro, irmãs das que estão no corredor da área comum, perto dos elevadores, e também em parte da sala. Eu vivo na Casa Monstro.

O ralo do boxe entupiu no último fim de semana. Usando a ponta de uma tesoura, tirei a tampa do ralo e, de dentro dele, um bolo pegajoso do tamanho de uma laranja-pêra feito de pelos e cabelos (posso provar que os cabelos não são meus). Mais tarde, no banho, fiquei cuidando do ralo para ver se escoava direito. Ergui a cabeça e reconheci um descascado da tinta entre as manchas no teto e, subitamente, me senti em casa.

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