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Recebendo Austregésilo de Athayde na Academia Brasileira em 1951, observava Múcio Leão que "um dos elementos que formam o encanto da Academia reside exatamente nisso, que chamarei o desencontro das sucessões, num feliz acaso mediante o qual vemos a substituição de um grande romancista, como Machado de Assis, fazer-se com a escolha de um jurista, a de um historiador político. a de um filósofo embebido de Poesia, como Nabuco, fazer-se pela escolha de um guerreiro, um cronista de assuntos militares, a de um poeta soberano como Raimundo Correia, fazer-se pela escolha de um sábio, de um médico, de um sanitarista" (Discursos Acadêmicos. Tomo IV, 1951-1965. Rio: Academia Brasileira de Letras, 2008).

Meramente exemplificativa, a lista poderá ser alongada, abrindo interessantes perspectivas para a vida acadêmica, a natureza humana e a história literária, tudo matéria de reflexão para o moralista, porque os membros da ilustre Companhia sempre foram e continuam sendo homens a quem nada de humano será estranho. Assim, por exemplo, e para lembrar desde logo o grande escândalo acadêmico que foi a posse de José Lins do Rego na sucessão de Ataulfo de Paiva. Social, literária e intelectualmente é impossível imaginar dois homens mais diversos, e até opostos, eu diria, dois homens provindos de galáxias diferentes, cujos corpos giravam em órbitas próprias, sem possibilidade de simpatia, nem mesmo de tolerância recíproca.

Homem conhecido pela generosidade de coração, Lins do Rego comportou-se por inesperado, como aquele "sacrificador bárbaro" evocado por Lafayette Rodrigues Pereira em páginas célebres, "que veio lá das regiões Cimérias... Estudou retórica em alguma escola de província, fez um grosso pecúlio de teorias [...] queimam-lhe despeitos porque Atenas olha com um certo ar de desdém para os bárbaros [...]". De fato, boa parte do seu discurso foi empregada em ridicularizar, com extrema agressividade, as boas maneiras de Ataulfo de Paiva, certamente o aspecto que mais o chocava: na resposta protocolar, Austregésilo de Athayde sentiu-se obrigado a dizer: "O último a ocupar esta Poltrona 25 [...] foi um leal servidor desta Casa e todos aqui queremos dar depoimentos de seus préstimos. O que lhe faltou em títulos literários quis sempre suprir em devoção aos interesses da Companhia [...]".

Registremos para a pequena história que as mesmas incompatibilidades, digamos, orgânicas, entre sucessor e sucedido já haviam ocorrido em 1918, quando o cinzento e mal-ajambrado Artur Orlando foi substituído pelo elegante e Reginaldo Ataulfo de Paiva, que, como seria de esperar, encarou a dificuldade com fidalguia irônica e cavalheirismo, sem nenhuma das grosserias de que seria objeto em 1956, referindo-se à "fisionomia um pouco tediosa" do antecessor, embora "extremamente simpática, descuidada de ademanes, despida de convencionalismos, com o aspecto às vezes algo embuchado e bisonho [...] patenteando naturalmente e com sinceridade um largo desprezo pelas coisas fortuitas [...]".

Há maneiras de dizer as coisas quando se fala a bons entendedores, a exemplo de Maurício de Medeiros, que descreveu com olho clínico o antecessor, Celso Vieira, pessoa misteriosa e secreta, que mandara suprimir a data de nascimento nos Anais da Academia, suspicaz e vingativo. Maurício de Medeiros traçou-lhe o retrato psicológico com tais sinalizações médicas que, quando, afinal, o aponta como "rebelde misógino" e, mais uma vez, à sua misoginia, somos tentados a entender esta palavra como simples eufemismo.

Entre o desencontro das sucessões a que se referia Múcia Leão, cabe mencionar a substituição de Cláudio de Sousa, cujo "elogio acadêmico" por Josué Montello é um modelo do gênero, tanto por ser elogio quanto por ser acadêmico. Era uma formalidade, um momento penoso e passar, cuja maior dificuldade estava em resistir honestamente à crítica negativa sem descer à retórica vazia e convencional, mas conservando a cortezia de estilo. Para o que ele se preparou com consciencioso espírito de dever moral, lendo todas as obras de Cláudio de Sousa (o que já era uma façanha), "colhendo aqui e ali, o pretexto para o louvor cauteloso". Ou ainda: "Continuo a obstinada leitura dos livros da Cláudio de Sousa. Sinto-me na pele de um penitente que vai levando na cabeça a sua pedra" (Diário da Manhã, novembro 17/20, 1954).

No período coberto por este volume há dois discursos particularmente importantes: o grande ensaio crítico de Álvaro Lins sobre Roquette-Pinto e o extraordinário retrato de Getúlio Vargas, no qual Assis Chateaubriand se igualou a Saint-Simon, mestre do memorialismo francês. São páginas frementes, sem nenhuma gordura retórica, escritas com a inteligência analítica que não se encontra nos "medíocres charlatães que já o estudaram" e não "enxergaram o segredo de sua imensidade: Vargas, era ele, e o plus-que-todos os seus contrários. A sua prodigiosas glória é a de haver tantas vezes sacudido este cadáver obediente que é o Brasil. Ele não falava para o povo: oficiava como um sacerdote". Getúlio Vargas era o homem do destino, "não era somente a América Latina e a Rússia; e Minas e o Rio Grande. Seu tato, a sua finura, as suas manhas, a sua solércia de gato, a sua sedução de demiurgo o identificam muito com o Rei da Itaca. Seu charme, o charme que emanava da sua pessoa, era irresistível. [...] Nele não havia um esforço de amabilidade, senão aquela elegante volubilidade, que punha nas conversas, ora ferindo um ponto, ora outro, conforme as tendências dos que faziam a sua roda".

Com essas palavras e esse julgamento, Chateaubriand colocou-se, por assim dizer, acima de si mesmo, e, claro está, acima do homem comum que, bem ou mal-intencionado, procura reduzi-lo às suas próprias dimensões. Citações esparsas mutilam um ensaio que deve ser lido na sua organicidade meditadamente. Ele e Getúlio Vargas saem engrandecidos de uma análise que, ao mesmo tempo, reconduz o ensaísmo brasileiro ao plano em que Joaquim Nabuco o havia colocado com os retratos dos nossos grandes estadistas. Resumindo, no discurso de resposta a extraordinária impressão causada por essas páginas magistrais, Aníbal Freire da Fonseca declarou: "Não sei como me atrevo a falar de Getúlio Vargas depois do vosso discurso".

Com elas Chateaubriand redimia-se, e redimiu a Academia das suspeitas que lhe haviam cercado a eleição (e a de Getúlio Vargas).

Austregésilo de Athayde e Múcio Leão, Luís Viana Filho e Menotti del Picchia, Josué Montello e João Neves da Fontoura, José Lins do Rego e Magalhães Júnior, Afonso Arinos e Manuel Bandeira, Jorge Amado e Afrânio Coutinho, Gilberto Amado e Marques Rebelo – eis como um volume de discursos acadêmicos se transforma no panteão da literatura brasileira.

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