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"Em perspectivas de longa duração, pode-se pensar que a política colonialista portuguesa foi se tornando cada vez mais anacrônica, envolvendo também enorme desgaste internacional do Brasil, episódio em que, por imediatismo eleitoral, o presidente Kubitschek perdeu por sua vez, a oportunidade histórica mais consentânea com o seu caráter ..."

Dentre os episódios da vida diplomática evocados por Alberto da Costa e Silva em suas recordações (Invenção do desenho: ficções da memória Rio: Nova Fronteira, 2007) está o jantar oferecido em Lisboa pelo presidente Juscelino Kubitschek, ficando o diplomata Jorge Alberto Nogueira à entrada para recolher os cartões indicadores dos lugares: "Um senhor grisalho e discreto, sem condecorações na casaca, e que entrara na sala sozinho, aproximou-se de Jorge Alberto, cumprimentou-o e encaminhou-se para a mesa do banquete. Jorge saiu atrás dele, sem se atrever a lhe pedir o convite: – "Senhor, senhor, deixe-me mostrar onde estará sentado".

E o senhor, tranqüilo e incisivo: – "Eu sei onde é o meu lugar".

Cena tipicamente salazariana: o homem ironicamente simples, poderoso mas sem arrogância, figura apagada no meio das condecorações e medalhas cintilantes, realçada pelo desfecho: "No fim do jantar, quando se alongava a recepção, alguém notou que Salazar conversava com Jorge Alberto. Ele tinha procurado o nosso colega no meio da multidão para aquietá-lo [...]". Ele sabia o seu lugar entre os grandes do mundo, mas talvez já não soubesse mais o seu lugar na história contemporânea, e isso por "não olhar nunca para fora da janela", na pitoresca imagem de Da Costa e Silva, privando-se de "perceber que se ia avolumando nas Nações Unidas a insatisfação com o imobilismo português no trato do problema colonial e que essa insatisfação começava a transformar-se em hostilidade".

Em perspectivas de longa duração, pode-se pensar que a política colonialista portuguesa foi se tornando cada vez mais anacrônica, envolvendo também enorme desgaste internacional do Brasil, episódio em que, por imediatismo eleitoral, o presidente Kubitschek perdeu por sua vez, a oportunidade histórica mais consentânea com o seu caráter: estava consciente, dizia ele, "de que a maioria do povo brasileiro era anticolonialista e desejava que os portugueses concedessem a independência a suas colônias, mas que essa mesma maioria não aceitaria um só gesto que pudesse ser interpretado como de hostilidade a Portugal. [...] ... sendo rara nas grandes cidades brasileiras uma família sem o seu português, um voto contra Portugal representaria centenas e centenas de milhares de votos contra quem o autorizasse". Seria uma "insensatez política... a imprensa seria contra ele [...]". Era o político predominando sobre o estadista numa contingência em que, aliás, acabaria perdendo nos dois tabuleiros.

Não foi a única: houve também o "caso Álvaro Lins", com certeza o temperamento menos diplomático jamais envolvido em circunstâncias semelhantes: nos últimos tempos de sua missão em Lisboa, ele "não escondia a sua amargura.

E se eriçara. Sentia-se traído pelo presidente que ajudara a eleger e de quem fora auxiliar de confiança", tudo explodindo, como se sabe, no incidente Humberto Delgado: "semana após semana, mais evidente lhe parecia que, entre ele e Salazar, Juscelino ficava com o segundo. O presidente não disfarçava, aliás, a admiração em que tinha o ditador português". O mais estranho é que este último se mostrou tão conciliante quanto possível sem perder a face, chocando-se contra a intransigência de um embaixador que tampouco queria perder a sua. É o que se lê nas suas memórias (Missão em Portugal), que teriam ganho com menos paixão polêmica e mais serenidade.

No meio desses dramas, sempre havia (como sempre...) intermezos de comédia, como na ingenuidade com que brasileiros bem intencionados aceitavam visitar as colônias "com plena liberdade de observação e sem interferência oficial": "O governo português solicitara ao brasileiro que este enviasse uma missão [a Angola] com o objetivo [...] de recolher informações diretas. Para isso, assegurava aos visitantes a mais ampla liberdade de movimento e de contactos. Salazar havia sido claro em sua conversa com Negrão [de Lima]: ele poderia ir aonde quisesse, conversar com quem desejasse e requerer das autoridades o que julgasse necessário [...]". Ao descermos do avião, já nos aguardava numa multidão com bandeirinhas portuguesas. E as bandeirinhas portuguesas nos acompanharam por toda parte, agitadas principalmente por mãos infantis. Havia um espetáculo montado para cada uma de nossas horas [...]".

Claro, as autoridades locais tinham também deveres a cumprir: "No aeroporto de Luanda, alguém nos disse baixinho que a polícia tinha começado a prender e a interrogar as pessoas que haviam conversado conosco. Um ou dois dias depois, em Lisboa, a oposição nos confirmou a notícia. Negrão ficou furioso, demonstrando boa-fé talvez excessiva num embaixador, pois aquela era a resposta habitual, se não de Salazar, pelo menos do regime, que tinha a sua própria lógica, não sendo raros os casos em que os dirigentes são desautorados pelo excesso de zelo dos subordinados. Perdendo a oportunidade de abrir mais uma janela, Salazar declarou a Negrão de Lima que jamais tivera tempo de ir a Angola...

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