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Sim, sem dúvida, toda literatura é autobiográfica, mas, no que se refere à poesia, trata-se de metáforas, pensadas por imagens, não de referências factuais, pensadas por idéias. Ora, pertencem a esta última espécie os poemas de Luiz de Miranda. (Nunca mais seremos os mesmos. Porto Alegre: Nova Prova, 2005), cujo único objetivo é ele mesmo nas suas vicissitudes, encarando-se como vate inspirado, personalidade invulgar, paladino social e político, vivendo na nostalgia das grandes causas perdidas. Sua persona literária é a do profeta "poderoso e solitário", como Moisés no poema de Vigny, incluindo-se, entretanto, na companhia privilegiada dos "fanais" da prestigiosa galeria, tudo impregnado de autopiedade sentimental: "Sou triste, muito triste, como jamais viste. Vivo a moer/ o fel das horas, / mas mora em mim/ um coração selvagem / que se debate / contra o tempo / e que ainda pode / mudar o mundo / como uma onda / muda o mar".

As ondas não mudam o mar, mas pouco importa: Luiz de Miranda partiu para mudar o mundo, daí voltando com as decepções inevitáveis e reações compensatórias, substituindo a mística política (que o persegue como uma obsessão) pela mística religiosa e epifânica (Deus é invocado em numerosas jaculatórias): "meu nome, revolução. E tudo dá em nada [...]" – sendo renitentes as recaídas na prosa autobiográfica: "late em minha alma, / um país que perdi, / um companheiro morto / naqueles anos de chumbo [...]". Anos de chumbo – lugar-comum banalizado e polêmico que nada tem a fazer num texto poético. Estamos nos domínios da prosa onde se inclui a maior parte dos textos aqui reunidos, muitos deles só "parecendo" poesia por estarem escritos em linhas desiguais. É o que se verifica se os retranscrevermos prosaicamente: "Volto a um bar em Porto Alegre, e este poema não termina, ele germina na fome dos humilhados, dos que lutam por sua terra e são fortes, dos que morrem na solidão em meio à grande cidade, dos vaticinados pela saudade, e são milhões dos que choram por dor de amor e vagam um mundo sem nome, dos que falam de democracia e não a cumprem, dos que dormem no chão das ruas". Ou então: "Cai a noite sobre Alegrete do dia quatorze de dezembro de mil novecentos e sessenta e oito. De tudo me lembro. O Ato Institucional Número Cinco. A ditadura abria fogo sobre todos nós [...]", etc., etc...

Há poemas (se os chamarmos assim) que retornam à autobiografia pura e simples, sem excluir o orgulho nobiliárquico: "De onde vim e de onde vieram Mirandas mais antigos. Um cavaleiro da casa de Ponce de Leon povou em Astúrias e deu a linhagem Miranda, sendo Albar Diaz de Miranda o primeiro sobrenome que se recorda [...]", etc... Escrevendo em prosa referencial por meio de linhas irregulares, ele também reivindica, como seria de esperar, a condição de poeta: "a Poesia é e sempre foi minha lei", o que não exclui o olhar ao mesmo tempo sentimental e "literário" sobre si mesmo: "Chove plumbeamente sobre a cidade. / houve-se em água minha tristeza, / dói-me o tempo, vai-se toda a idade, / resisto só às asperezas da ingratidão. / O mundo gira e a tudo falimenta, / e leva a pobreza do sonho / o pouco que resta da minha esperança [...]."

É impossível não simpatizar com essa reencarnação romântica do poeta maldito em luta contra a sociedade, embora castigado pelos acontecimentos. Os Escritos Militares de Mao Tse-Tung o acompanham até hoje, escreve a propósito de suas viagens à China, mas Cassiano Ricardo foi o seu grande revelador da poesia. Caberia perguntar: qual deles, sabendo-se das suas sucessivas metamorfoses ao acaso das modas que se sucediam. Há, contudo, outros mestres ainda mais canônicos: "Saúdo Antônio Machado, poeta espanhol tão dentro da minha vida. Saúdo Miguel Hernández, que morreu no cárcere" (a prisão sendo selo de autenticidade aos olhos de Luiz de Miranda). Saúdo García Lorca. "toureiro fuzilado em Granada" cujo fuzilamento, lembremos de passagem, suscita mais perguntas do que respostas. Saúdo Juan Ruiz... Jorge Manrique... Dom Camilo José Cela (sobre quem começam a aparecer as perguntas indiscretas)... Pablo Neruda, "tão Chile" ... Gabriela Mistal... Salvador Allende, "poeta da política, presidente comunista eleito pelo povo"... José Marti... Nicolás Guillén... César Vallejo... Rubén Dario [...]" – eis o Panteão da "verdadeira" Poesia. Acrescentem-se as declarações de princípio, que tampouco faltam: "O poeta nomeia as coisas e ordena o mundo. Este é meu ofício, meu vício diário e intransferível". Aqui está ele em largas perspectivas históricas: "Não inventei o destino, ele vestiu-me desde menino, deu-me nome e sina. Aos poucos formou-se a minha estrada... e singro mares nunca navegados a ressurgir a um passo do paraíso", simples unidade das grandes legiões escatológicas que renascem das próprias cinzas: "Só me resta viver e escrever esta dor sozinha... e esta última lágrima que agoniza em minha face. Dos amigos mortos renasce esta aurora coberta de neve do Kilimanjaro e as horas morrem perto dos meus pés e longe das marés bravias".

Em crítica, como na medicina, é sempre aconselhável ouvir a "segunda opinião, que aliás, nada garante ser mais acertada do que a primeira. No caso, este artigo é, desde logo, a segunda opinião, porque a primeira consta da fortuna crítica incluída como apêndice ao volume. Os primeiros versos de Luiz de Miranda vinham num "livro definitivo para a história da nossa poesia" (Cassiano Ricardo); Luiz de Miranda é "poeta maior deste país" (Moacyr Scliar); "contribuição definitiva à literatura brasileira" (Raul Bopp); "uma das poucas vozes da poesia brasileira atual" (Nelson Werneck Sodré); "grande poeta da língua portuguesa" (José Edil de Lima Alves); "poeta puro... existe, veio de Uruguaiana e chama-se Luiz de Miranda" (Tabajara Ruas); poesia de "alcance universal e atemporal" (Antônio Hohfeldt); "o que de melhor existe no Brasil" (Guilhermino César); "o melhor livro de poesia publicado no Brasil e nas Américas" (Adovaldo Fernandes Sampaio); "o melhor poeta vivo do Brasil" (Ary Quintella); "entre os principais valores da atual poesia brasileira" (Sérgio Ribeiro Rosa) – juízos, todos, que o leitor poderá contrastar (linguagem de ourivesaria) com os poemas do volume.

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