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Por uma das traiçoeiras inadvertências que às vezes ocorrem nas obras de grande porte, Gabriel García Márquez é o grande ausente da suma romanesca de Dominique Fernandez (L’art de raconter. Paris: Grasset, 2006), mencionado apenas em três ou quatro alusões de passagem, incluído embora na família literária de Alvaro Mutis, Mario Vargas Llosa, Alejo Carpentier e Jorge Amado, o que implicitamente lhe diminui a excepcionalidade. Algumas das suas raízes mais aparentemente específicas provém, entretanto, de onde menos poderíamos esperar – o romance de André Schwartz-Bart, não só esquecido, mas claramente silenciado por interesses de fácil identificação (Le dernier des Justes, prêmio Goncourt de 1959), história curiosa estudada por Seymour Menton num dos ensaios sobre a narrativa latino-americana (História verdadera del realismo mágico. México: Fondo de Cultura Econômica, 1998).

Considerado por críticos eminentes como um dos romances franceses mais importantes das décadas anteriores, o livro foi também objeto de julgamentos rancorosos, responsáveis tanto pelo silêncio que de então por diante o envolveu quanto pela subseqüente esterilidade do autor. Não é jamais citado nas histórias literárias nem pelos críticos, havendo, ao que parece, um acordo tácito para ignorá-lo. Quanto aos tratadistas da "literatura do Holocausto", observa Seymour Menton, "costumam desprezá-lo por motivos religiosos e históricos". Contudo, "temos que redescobri-lo e apreciá-lo [...] por suas qualidades literárias".

Entre elas, as que Menton denomina de "prefigurações" de Cem anos de solidão. Schwartz-Bart inventou sem querer o romance de García Márques, antecipando-se com a solidão secular de uma família judia à solidão igualmente secular da mitológica família latino-americana. Os dois romances se assemelham pela estrutura narrativa e por numerosos traços de realismo mágico. Há no colombiano um pormenor estilístico muito original, escreve Seymour Menton, que bem parece inspirado em Schawartz-Bart: "Em Cem anos de solidão, depois do massacre da bananeira, José Arcádio Segundo viu-se rodeado de cadáveres no trem rumo ao mar: ‘os mortos homens, os mortos mulheres, os mortos crianças’. Em situação semelhante do Último dos Justos, Ernie Levy, viajando apertado no trem de Auschwitz, recolhe com cuidado o cadáver de uma criança que acaba de morrer e o coloca [...] ‘sobre o montão crescente de homens judeus, de mulheres judias, de crianças judias’ ".

García Márquez vivia em Paris entre 1955 e 1957 e, embora não haja prova de que tenha lido O último dos Justos (o contrário seria inverossímil, dada a celebridade do prêmio), os dois romances se assemelham pela estrutura narrativa e por numerosos elementos de composição. Seria impraticável repetir aqui a convincente demonstração com que Seymour Menton examina as sete partes que prefiguram Cem anos de solidão, nomeadamente o espaço mágico-realista (Stilenstad e Macondo, por exemplo), os personagens inesquecíveis (arquétipos e indivíduos) e os episódios mágico-realistas exemplares.

Essa nova leitura de Cem anos de solidão ou a leitura em novas perspectivas e parâmetros, deve ser completada por outro estudo em que Seymour Menton aponta-lhe a fonte colombiana no romance de Héctor Rojas Herazo, Respirando el verano (1962), "crônica de uma família, abarcando pelo menos cem anos, num povoado tropical na costa norte da Colômbia (Caminata por la narrativa latinoamericana. México: Universidad Veracruzana/ Fondo de Cultura Econômica, 2002). Os dois romances se identificam "na caracterização dos personagens integrantes das duas famílias, na visão mágico-realista do mundo e no estilo de certas passagens, ainda que o estilo geral das duas obras seja diferente". Se não pode haver a menor dúvida quanto à influência de Respirando el verano sobre a composição de Cem anos de solidão, escreve ainda Seymour Menton, "uma comparação global dos dois livros reafirma a maior complexidade e a enorme riqueza da obra de García Marquez. Enquanto Cem anos de solidão é a crônica do povoado de Macondo tanto como dos Buendía, Respirando el verano apresenta a família de Celia quase num vácuo social." É impressionante nos dois romances o paralelismo dos personagens: Celia antecipa-se a Úrsula Buendía como eixo da família e na sua identificação com a casa, e assim por diante.

A influência de Rojas Herazo sobre García Márques parece inegável, assim como é indiscutível a superioridade deste último, porque, conclui Seymour Menton, Respirando el verano "não é um romance de primeira categoria". Apesar disso, "merece ser recuperado do esquecimento por haver contribuído para a criação de certos protagonistas-chave de Macondo".

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