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Dos seus 64 anos, Adolfo Casais Monteiro, cujo centenário está transcorrendo, viveu os últimos 18 no Brasil, onde faleceu. Foi, como Jorge de Sena, de quem era amigo, um dos intelectuais anti-salazaristas voluntariamente exilados, aqui realizando uma segunda carreira na universidade e nos meios literários. Antes disso, tinha sido figura proeminente do grupo da presença que, com o Neo-Realismo, foi um dos dois movimentos mais importantes da literatura portuguesa no século 20, aliás doutrinariamente antagônicos, o que ia bem com o seu temperamento polêmico por natureza.

O exílio, "tornado definitivo com a morte, a resistência às classificações (a não ser à custa de simplificações abusivas), o próprio declínio da Literatura na cultura contemporânea (universitária inclusive), tudo isso contribui para que seja natural esquecer Casais Monteiro. Apesar de, como Sena observou, o Brasil o ter amaciado muito, também nunca o surpreendemos tentando ser mais afável do que se sentia" (Carlos Leone. "Mestre das Mudanças". Lisboa: J L: Jornal de Letras, Artes e Idéias, 9/9/2008).

De fato, ele sempre me deu a impressão de estar permanentemente mal-humorado, fechado sobre si mesmo: jamais o vi sorrir, menos ainda rir, o que seria impensável. Sua atitude perante o mundo era adversarial, embora, encontrasse no Brasil, inclusive do ponto de vista profissional, a receptividade mais calorasa e, considerando as circunstâncias e a sua personalidade, mais generosa. Quando O Estado de S. Paulo organizou o seu famoso Suplemento Literário, entregou-lhe a seção permanente de literatura portuguesa, cujos artigos, com esse título, foram posteriormente reunidos em volume por Zina M. Bellodi (Araraquara: Unesp, 1983).

Antes disso, havia saído o seu livro mais importante dentre os publicados no Brasil (O Romance: Teoria e Crítica. José Olympio, 1964), ainda hoje de proveitosa leitura. Ele mesmo, escrevi então a propósito, tem, como todos nós, "as suas bestas negras, os seus inimigos a abater, as suas preferências sentimentais e ideológicas, os seus ‘fracos’ inconscientes, mas a crítica literária também é feita de paixão, dizia Baudelaire, que até acrescentava ser ela feita só de paixão". Um livro como esse não se lê para estar ou não estar de acordo com o autor: lê-se para compreender que coisa é o romance. Ele se referia ao conhecido livro de Jaloux (esse esquecido!) classificando-o de "não muito profundo, mas útil para leitores que possam pensar como aquele personagem dos Maias, para quem a Inglaterra, além do carvão e coisas assim, não produzia nada" (lembre-se que o francês Jaloux, que teve o seu momento de prestígio, classificava a Inglaterra como "o país do romance").

País estranho, de geografia todo particular, que Adolfo Casais Monteiro delimitava pelos nomes de Balzac, num extremo, e Cyro dos Anjos no outro. Tais coordenadas mostram bem que, em matéria de universo romanesco, seu livro está no terceiro dia da criação, quando as terras e as águas ainda não se haviam completamente separado. No plano dos julgamentos específicos, por exemplo, é difícil de compreender que haja feito todos os esforços para "salvar" Montanha, de Cyro dos Anjos, ao mesmo tempo em que com obstinada má vontade procurou todos os motivos para "rejeitar" Vila dos Confins, de Mário Palmério, para as trevas exteriores.

Ele admitia como "romance político" apenas o romance ideológico, que é outra coisa: dir-se-ia que tomava A Condição Humana como romance estalão, o que é pelo menos estranho num leitor de Balzac. A matéria e o estilo de Vila dos Confins refletem a psicologia e os costumes de um Brasil profundo que, segundo parece, era para ele um território fechado, tanto mais que o seu espírito reagia por valores e preconceitos orgânicos completamente diversos. Por surpreendente que pareça em homem tão inteligente, ele ainda conservava no fundo de si mesmo com relação ao Brasil e aos brasileiros o paternalismo instintivo que até hoje se manifesta em "recaídas" incoercíveis (como se fala nas "recaídas" de uma enfermidade). Ele morreu sem compreender ou aceitar que, a partir da Independência e por causa da Independência, Brasil e Portugal passaram por uma recíproca autonomia intelectual, apesar da língua comum, fenômeno que não nCheguei a estranhar que uma coleção de Nossos Clássicos, publicada no Brasil, fosse iniciada pelo volume dedicado a Fernando Pessoa, organizado por Casais Monteiro, o que lhe pareceu apenas o sinal de uma tenebrosa conspiração contra a literatura portuguesa em que me vi inesperadamente mancomunado com Afrânio Coutinho, Fausto Cunha e outros menores. Eu havia tocado sem saber, perceber ou desejar, num nervo sensível e tanto mais sensível quanto Casais Monteiro tinha sido o confidente privilegiado do poeta na questão dos heterônimos.

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