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A história é uma façanha da liberdade (título dado por Enrique Díez Cañedo à sua tradução de Benedetto Croce), exatamente o que se pode pensar a respeito dos valores morais (Fábio Konder Comparato, Ética: Direito, Moral e Religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006). São os parâmetros em que se constituiu e desenvolveu o que se entende por civilização, longo percurso que, iniciando-se na Grécia, passou por Roma e os Doutores da Igreja, daí desembocando na "era das contradições" – Maquiavel, o Protestantismo, Thomas Hobbes e Jean Bodin, para culminar filosoficamente na figura do incontornável Hegel, sob esse aspecto mais importante do que seu discípulo ingrato Karl Marx.

Foi o caminho por assim dizer perverso e contraditório (mas não tanto...) que conduziu aos Estados totalitários do nosso tempo e daí aos previsíveis impulsos para a reconstrução da Ética, confirmando as idéias de Vico sobre o eterno retorno. O título de Enrique Díez Cañedo, condimentado com algum chile mexicano, inspirava-se em um capítulo de Croce: "História como história da liberdade", famosa afirmação de Hegel, diz ele, "repetida sem ser completamente compreendida e depois difundida na Europa por Cousin, Michelet e outros escritores franceses". Mas, Hegel e seus discípulos, acrescentava o severo Croce, "usaram-na com a significação que criticamos anteriormente, de uma história do primeiro nascimento da liberdade, do seu crescimento, de sua maturidade e de sua permanência estável na era definida em que é incapaz de mais desenvolvimento" (História como história da liberdade. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Pref. Claes G. Ryn. Rio: Topbooks, 2006).

O livro de Comparato é monumental em erudição, sabedoria e clareza expositiva, bastando exemplificar, a esse propósito, com o capítulo sobre Hegel, justamente, em que muitos expositores o tornam mais difícil do que é. Note-se que o que tem de erudito pertence à informação, no caso insuperável, e o que tem de sabedoria refere-se ao conhecimento de primeira mão. Não é uma "pesquisa" de internet como tantas outras dos nossos dias, contrafação irresistível nesta época em que as tecnologias avançadas oferecem a informação pronta e digerida. Além das línguas clássicas, lidas e comentadas no original, sobre a mitologia e os sistemas filosóficos, as religiões e os sistemas políticos, as utopias e a realidade, porque, tudo bem pensado, o objeto da Ética é mais o mundo como deveria ser que o mundo como inevitavelmente é. A Ética relaciona-se com a terra dos homens, e isso diz tudo (a favor dela e contra ela).

Daí serem necessariamente relativos os postulados e valores morais, os preceitos éticos e reconhecidos como desejáveis: o que é verdade de um lado dos Pirineus, pode não sê-lo do outro lado, dizia o insuspeito Pascal, lembrado por Comparato. Fixados os princípios éticos como norma de comportamento, percebe-se que tudo se transfere para o plano dos devaneios, como rejeitar a globalização e suas conseqüências, se isso fosse possível, ou imaginar que os tratados internacionais podem impedir as guerras: "Sucede que no mundo moderno as normas éticas, antes consubstanciadas em usos e costumes tradicionais, formando o que os gregos denominavam lei não-escrita... passaram, sempre mais, a ser expressas em declarações ou tratados internacionais, constituições e leis". Assim, os princípios éticos devem ser obrigatórios... alías obedecidos ao acaso das conveniências.

No momento atual dessa longa história surgiu o neoliberalismo, palavra de código para designar o capitalismo, também anatematizado sob o nome de darwinismo social. Os argumentos em favor do neoliberalismo são "astuciosos", escreve Comparato: "em lugar de se dizer que o aumento dos gastos públicos com políticas sociais solapava o capitalismo, alardeou-se quertais despesas, pelos seus efeitos inflacionários, constituíam uma séria ameaça ao regime democrático. Saía-se de uma ideologia para outra: "essa acusação dos ideólogos neoliberais representou, na verdade, o estratagema típico do caluniador: o adversário é acusado de cometer exatamente o mesmo delito que o acusador se prepara para praticar, ou já pratica" (Celso Furtado).

Será talvez decepcionante, mas terminamos, afinal de contas, numa guerra de palavras, que só significam o que desejamos que signifiquem. Escreve-se sobre Ética sempre em nome de princípios e aspirações pessoais, implícita ou explicitamente articuladas: "em contraste com o desnorteamento mundialmente predatório do capitalismo", escreve, por sua vez, Fábio Konder Comparato, "assistimos à progressiva formação do conjunto dos direitos humanos como um sistema no sentido que esse conceito assume hoje na biologia e nas ciências humanas. Nos mais diversos países, assim como no plano das relações internacionais, reforça-se continuamente a conexão entre direitos individuais e direitos sociais, entre direitos dos povos e direitos da humanidade".

Estamos falando do nosso mundo? Estamos falando de um mundo possível? O mundo real é o melhor dos mundos possíveis, dizia o sardônico Voltaire, em verdade que é preciso levar a sério. Do possível para o desejável a distância é intransponível. O que não nos deve impedir de acompanhar Comparato no caminho que propõe, o da Vida, da Verdade, da Justiça e do Amor. Mas, se fosse possível, já teria sido feito.

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