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Há também o vade-mécum freyriano, excelente instrumento de trabalho ao qual, segundo parece, nem o jornalismo literário, nem mesmo os comentaristas especializados, prestaram a atenção que exige. É livro indispensável em qualquer biblioteca de cultura brasileira, em especial no que se refere ao seu objeto específico (Edson Nery da Fonseca. Gilberto Freyre de A a Z. Referências essenciais à sua vida e obra. Co-edição Fundação Biblioteca Nacional/ Departamento Nacional do Livro. Rio: Zé Mário Editor, 2002).

Sendo o gilbertiano dos gilbertianos, Edson Nery da Fonseca, depois do extraordinário programa de televisão em que foi um narrador exemplar pelo conhecimento, pelos comentários e pela naturalidade em face da câmera, devolve-nos realmente Gilberto Freyre (foto), de A (Academia das Ciências de Lisboa) a Z (Zodíaco), passando pela riqueza e variedade de verbetes em que todos os tópicos possíveis (ou quase todos...) foram cobertos e registrados.

Enciclopédias e dicionários são livros que consultamos à procura de informações específicas e até idiossincrásicas, que nos interessam ao acaso das necessidades ocasionais e que nem sempre ocorreram aos compiladores registrar. No que se refere a Gilberto Freyre, não seria supérfluo um verbete sobre a Crítica, quero dizer, os críticos que realmente contaram para a sua leitura através dos anos e das circunstâncias, ou seja os pontos obrigatórios de remissão em sua Fortuna Crítica. É uma história riquíssima, surpreendente, contraditória e, aliás, rotineira: à deslumbrada consagração que recebeu Casa grande & senzala seguiram-se anos de restrições por assim dizer compensatórias, desafiadoras e vingativas, nem sempre desinteressadas e objetivas.

Muitos puristas acadêmicos em matéria metodológica censuram-no por seu pluralismo analítico, correção implícita ao automatismo didático. Outros, por serem "de direita", condenaram-no por ser esquerdista, enquanto os "de esquerda", sobretudo em anos mais recentes, fizeram o mesmo por considerá-lo "de direita". São esses os parâmetros automáticos da feira literária, julgando-se os autores não pelo que escrevem, mas pelo que são ou parecem ser. Pela natureza da obra e independência de espírito, ele desagrada eventualmente direitistas e esquerdistas, com a previsível conseqüência de se ver condenado por todos eles – no que, por inesperado, uns e outros se reconciliaram em suas próprias contradições.

O Modernismo de 1922 (sobre o qual não há verbete específico) foi um acúleo doloroso e irritante no seu espírito. Começando por uma reação instintiva de despeito, ridicularizando e menosprezando "os modernistas de São Paulo" (que lhe haviam roubado a prioridade da revolução intelectual), acabou por se resignar à cruel realidade, reivindicando para o próprio regionalismo a condição de ser "modernista à sua maneira". De fato, regressando ao Brasil em 1923, ele encontrou feita a revolução que deveria ter sido a sua, sem poder aceitar, tampouco, a condição de discípulo. É uma história interessante, porque, havendo muitos outros, antes e ao lado dele, que se viram encurralados em situação idêntica, ele foi, contudo, o mais eminente de todos.

Em tudo isso, o famoso Manifesto regionalista funcionou como um abscesso de fixação, conservando a data original de 1926 mesmo depois das reedições corrigidas a partir de 1952, que é a verdadeira edição original. O nome obrigatório nessa história é o de Joaquim Inojosa (1901-1987), em cujo verbete lê-se o seguinte: "A partir dos anos 70, empenhou0se em ‘desbancar o falso pioneirismo de Gilberto Freyre’, tentando provar que o Manifesto regionalista de 1926 fora escrito em 1952. Publicou, com este objetivo, Um manifesto imaginário (1972), Carro alegórico (1973) e Sursum corda (1981)".

Livros polêmicos, fundados, entretanto, em documentação irrecusável: a comunicação oral ao Congresso Regionalista de 1926 só foi posta por escrito um quarto de século depois, incorporando toda a evolução intelectual de Gilberto Freyre nesse período. Contexto em que não será arbitrário considerar o Livro do Nordeste como documento mais autêntico de cronologia intelectual. Trata-se, como se sabe, de "obra coletiva, pluridisciplinar e de amplitude transregional organizada por G.F. como parte das comemorações do primeiro centenário do Diário de Pernambuco" (1925), sendo nomeadamente de sua autoria a apresentação geral e as de cada colaboração. Há edição fac-similar, com prefácio de Mauro Mota, publicada em 1979 pelo Arquivo Público Estadual (v. "Livro do Nordeste").

Dizendo tratar-se de "uma hipocrisia", Machado de Assis recusou a presença de um padre e as últimas cerimônias rituais in extremis, mas Gilberto Freyre recebeu os sacramentos da Reconciliação, Eucaristia e dos Enfermos, reconduzindo-o às tradições brasileiras que tanto amou.

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