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Horas amenas de leitura ou de leituras amenas em companhia de Leopoldo Serran (Arara Carioca. A Girafa), Luiz Antônio de Assis Brasil (Música Perdida L&PM), Paulo Wainberg (Os Malditos. Bertrand Brasil) e Edla van Steen (Os Melhores Contos. Global), todos de 2006 – folha de temperatura para a ficção brasileira dos nossos dias, permitindo concluir que não se encontra em estado febril: não é neste momento que se está manifestando a lengedária febre de criação.

Nesse contexto, a coleção Melhores Contos é quase um epigrama, voltada como está, para o passado e sugerindo antes os inevitáveis balanços finais para avaliação do estoque. No caso de Edla van Steen, há muitos contos excelentes, embora alguns não se possam contar entre os melhores (dela ou de qualquer ou-tro). É a contista de um mundo específico, a média burguesia paulista, com problemas de família, conflitos de consciência e dramas inconfessáveis, tudo no ambiente tranqüilo e convencional das aparências: "Ela não podia ter acordado nunca mais. Que dia é hoje? Sábado. Finalmente Lara abre os olhos devagar, as pálpebras pesadas. Não acordar nunca mais! [...] Bodas de ouro. Ela não quer saber nada daquilo, missa, café e almoço" ("Bodas de ouro").

No que se refere a Paulo Wainberg, a nota editorial diz tudo: "O personagem principal é um tipo raro. [...] usa a primeira pessoa do plural para contar uma história que abrange cerca de quarenta anos de sua vida [...]. Os malditos, afinal, quem são? [...] A resposta revela-se na contramão de uma narrativa cheia de sobressaltos, peripécias, situações insólitas e, em cada cena, um humor nervoso e raro". É verdade. Encontrando na rua a mulher que espancava brutalmente o filho, eis como apresenta o incidente: "A agressão, ao contrário do que pensariam os tendenciosos, não se expressava por palmadas na bunda... mas sim por potentes bofetadas, que já provocam sangramento (nasal e bucal), o que, na circunstância, nos pareceu lógico e aceitável". Eis o inesperado: "Ainda que desejássemos estimular a jovem mãe, sugerindo alguns golpes que, ao nosso experimento olhar, ela desconhecida, impunha-se ao nosso desejo o movimento de suas pernas [...]". Essa mulher vai ser o grande amor de sua vida, O estilo é feito desse humor corrosivo até ao desfecho, em que, depois de uma vida cheia de incidentes desagradáveis e decepções, lemos as sardônicas linhas finais: "Estamos no hospital, recolhidos a uma cama e reduzidos a um quarto. Nossa doença é incurável e progressiva e a morte é iminente". Recorda, então, os seus dezoito anos, quando o pai comprara um automóvel: "Dezoito anos, que idade maravilhosa, a vida inteira pela frente". Aqui, o autor voltou por descuido à primeira pessoa do singular, de-monstrando que o artifício inicial foi apenas uma "originalidade" desnecessária.

Em Arara Carioca, o personagem não é e nada tem de revolucionário, mas atende ao pedido de um amigo para es-conder o misterioso "quadro dirigente": "Precisamos de um colaborador, de um apartamento... era homem de grande importância e a organização cuidaria dele com extremo zelo [...]". A narrativa se desenvolve de acordo com os planos, não sem algum toque de ridículo involuntário: "Ele chegou usando óculos escuros, a parte interna das lentes vedada com fita isolante. Trajava um paletó que um dia fôra cinza e na sua camisa negra um bolso habitado por várias canetas... Dormia pouco e trabalhava muito... fazia a sua cama, lavava a sua louça e jamais deixou uma toalha jogada ou um banheiro molhado. Quando usava a mesa da sala para escrever, bloco de papel e livros obedeciam a uma certa simetria [...]". É desse material que se fazem os quadros dirigentes e os grandes revolucionários.

O problema crítico proposto pelo livro de Assis Brasil é saber se se trata de romance histórico ou de biografia romanceada, acrescendo-se o elemento perturbador que é a técnica de exposição fragmentada em pequenos quadros. O autor tinha nas mãos a matéria de qualquer dessas espécies, mas o conjunto sugere não pertencer realmente a nenhuma delas: é um episódio da vida artística e social brasileira na primeira metade do século 19. Extraviada em Paris, a grande composição musical reaparece quando o músico está morrendo: "O Maestro Mendanha escuta o soar do carrilhão da sala. [...] Ajeita-se ao comprido na cama, tentando subjugar a dor cada vez mais intensa... o coração vai espaçando seu latejar [...]". A música perdida ressoa na catedral: "A viúva, imóvel, posta-se ao lado do esquife. O véu negro pende sobre seu rosto. ... Os músicos executam a cantata Olhai, Cidadãos do Mundo... Enfrentam o Finale da primeira vista [...]".

É uma leitura que nos deixa ressaibos de cinza, virada a última página, com a sensação de obra falhada. Não sabemos como julgá-la – história fictícia de um gênio desconhecido ou história verdadeira de uma tragédia existencial. Tudo termina em procissão fúnebre, no momento exato em que a glória consagradora chegava tarde demais para quem a havia esperado a vinda inteira.

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