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Não há crônica – há cronistas de maior ou menor talento, verdade axiomática que se aplica a qualquer outro gênero literário. Todos se medem pelo parâmetro da qualidade, valor, é preciso reconhecê-lo, dos mais subjetivos. Leitores literariamente educados sabem, sem hesitação, que, enquanto cronistas, Machado de Assis é superior a José de Alencar, assim como Rubem Braga (foto) e Fernando Sabino são superiores aos incontáveis praticantes de uma arte que, à primeira vista, parece ao alcance de todos os principiantes. Joga nisso, no que se refere tanto aos escritores quanto aos leitores, a implacável lei dos grandes números: a qualidade diminuiu na exata proporção dos participantes, conhecida maldição de todas as assembléias e corpos coletivos de julgamento, cujo nível mental é sempre inferior ao dos seus membros individualmente considerados.

A crônica pode ser também um programa de calistenia estilística, conforme Miguel Sanches Neto revela ter sido o seu caso: "A crônica foi para mim um caminho para o exercício cotidiano de literatura, experiência fundamental a qualquer escritor que não descuide das relações com a realidade. Ao contrário do que afirmam certos teóricos, não a vejo como gênero menor, mas como o grande gênero de nossa pátria de tantas impurezas. Ela não foi um ponto de partida, por isso veio com as marcas de outras formas literárias" (Impurezas amorosas. Belo Horizonte: Leitura, 2006).

A memória e a observação sendo o território comum dos cronistas, ele as transpõe com ironia e até crueldade (como Fernando Sabino) ou então com o lirismo e melancolia (como Rubem Braga), tudo, bem entendido, no estilo fluente e sólido que é o seu. O primeiro e indispensável requisito do cronista é escrever bem, truísmo que constrange repetir, nem por isso menos digno de repetição, se pensarmos nas centenas dos que escrevem sem saber escrever. O fim do verão e a volta da praia traduzem-se, por exemplo, em quadros vivos em cores, animados e nostálgicos: "As mulheres reaparecem bronzeadas, com vestidos leves, frágeis modelos tomara que caia, florais e finos, mas deixando entrever a calcinha branca, para contrastar com a pele morena. Os vestidos são presos apenas por uma camada de elástico, sem nenhuma alça, e, acima deles, as marcas de biquini [...]" – melancólica tentativa de prolongar os momentos de felicidade , até com anacronismo: "Mesmo na seção de verduras e frutas sinto a brisa marinha no meio dessas mulheres de todas as idades... o suor delas deixa no ar o sal ainda impregnado na pele e elas guardam o despudor que exercitam na temporada. Todas com pouca roupa... Em alguns momentos, penso que, ao entrar num restaurante, eu as encontrarei apenas de biquini [...]".

Ai de nós! A praia é mais atraente nas ruas da cidade do que nela mesma: "Na areia, há um naturalismo meio frustrante. Belos braços nus encantam, mas daí surge a coleção secreta de celulite e estrias. Olhamos para a barriga retíssima, uma tábua de lavar roupa, quando a musa dobra para estender a toalha... para perceber os poros inflamados pela depilação... Quando voltam, elas se encobrem, instalando panos sobre certas partes... há também a tatuagem nas costas que todas querem mostrar[...]".

Afinal, o que querem as mulheres? – perguntava o velho Freud num momento de impaciência. Não é mais fácil, entretanto, saber o que querem os homens (além das mulheres): "Qualquer pessoa que tenha ocupado posição de mínimo destaque, seja no clube de escoteiros ou no time de várzea, foi alvo do mais estimulante sentimento nacional: o ódio. Xingar a mãe do juiz... é o sintoma mais gritante (com perdão do trocadilho) desse outro esporte brasileiro tão difundido [...]". E dizer que, há alguns anos, solenes intelectuais discutiram seriamente a respeito da cordialidade inata dos brasileiros... Mas, quando menos se espera, tornamo-nos bons, sentimentais e cismarentos, com a volta aos verdes paraísos da infância: "Em nossas explorações pelo quintal e pela vizinhança, estávamos invariavelmente descalços ou de chinelas de dedo, provando a dureza das pedras e a resistência de pequenos troncos. [...] Se éramos criados soltos, em contato com o mundo... para ir às aulas vestíamos um uniforme com camisa branca e colocávamos nos pés incômodos Congas, sem o aconchego de meias [...]".

Os meninos vão à escola para familiarizar-se com a biblioteca e a misteriosa arte de catalogar: designada para novas funções a funcionária Noeli "pôs-se a limpar as estantes vazias", imaginando qual seria a melhor forma de organizar as centenas de volumes espalhados pelo chão. Pelo tamanho? Descobriu que o método lógico seria separá-los por títulos e espécies, pondo as Memórias póstumas de Brás Cubas na estante de esoterismo, na didática A educação pela pedra e na botânica O nome da rosa, de Umberto Eco. Diz o anedotário que, consultando o catálogo de bibliotecas italianas à procura dos seus próprios livros, Sérgio Buarque de Holanda encontrou Raízes do Brasil na botânica, e Cobra de Vidro na ofidiologia, palavra aliás não registrada no Aurélio.

Direta ou indiretamente, a crônicas é gênero confessional, sem ser confidencial: o cronista sabe também que é preciso desconfiar dos leitores.

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