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A posteridade, grande eliminadora e selecionadora, rejeitou Franklin Távora (1842-1888) para a estante dos escritores menores, embora os contemporâneos, limitados pela falta de perspectivas, costumassem mencioná-lo como terceiro nome do romance brasileiro, ao lado de Taunay e Machado de Assis (Cláudio Aguiar. Franklin Távora e o seu tempo. Rio: Academia Brasileira de Letras, 2005). Cabe perguntar se Machado de Assis não era visto àquela altura como escritor menor, à espera dos anos de 1890 em que passou a ser considerado, e cada vez mais, como o maior dentre os maiores, enquanto a balança dos juízos finais da literatura baixou do outro lado, remetendo também Taunay para os menores. Entenda-se que ele e Franklin Távora podem ser vistos, com toda justiça, como alguns dos maiores dentre os menores, mas não se trata de aquilatar-lhes o valor individual, mas de situá-los numa ordem de grandeza.

A posição suprema era então implicitamente conferida a José de Alencar, patriarca de estatura inqüestionável e mestre cuja grandeza os demais se viam obrigados a reconhecer… menos Franklin Távora no empenho de rivalizar com ele. Daí, antes de mais nada, o móvel secreto das Cartas a Cincinato; tratava-se de destruí-lo para assumir-lhe a sucessão, em mais um caso clássico de parricídio na história das literaturas. O episódio é suficientemente conhecido para que seja necessário recordá-lo mais uma vez: podemos aceitar, com Cláudio Aguiar, que a posição de José Veríssimo foi "a mais acertada: ainda banindo da literatura e da vida, como devem ser, quaisquer estreitas prevenções nacionais, de todo impertinentes na ordem intelectual (alusão ao papel de José Feliciano de Castilho, o "intrigante português", como o chamou Sílvio Romero), essa obra de Franklin Távora, aliás apreciável como crítica e como estilo, era uma má ação. Fossem quais fossem os defeitos de Alencar, não eram tais que o desclassificassem do posto que ocupava nas nossas letras". Não se trata dos defeitos de Alencar, como afirma Cláudio Aguiar procurando dirimentes para a "má ação" de Franklin Távora: trata-se da maneira tendenciosa com que escreveu de começo a fim. Não fui um crítico isento, objetivo e desinteressado, para nada dizer da ingenuidade provinciana com que se deixou envolver nas intrigalhadas metropolitanas.

Em compensação, tinha tudo de literário sua proposta de uma "literatura do Norte" organicamente diferente da "literatura do Sul", obsessão permanente das nossas letras, observei a propósito da primeira edição deste livro (1997), embrião do arquipélago cultural sistematizado por Viana Moog em 1942: "Fundada no princípio de que ‘as letras têm, como a política, um certo caráter geográfico’, a teoria, exposta em 1876 na ‘Carta preliminar’ do romance O Cabeleira – por muitos considerado sua obra-prima – iniciara-se sete anos antes com Um casamento no arrabalde. Ele pretendia fixar sistematicamente, numa série de romances, os costumes e a psicologia das províncias setentrionais, no que já transparece a intenção de rivalizar com Alencar, cujo programa inconcluso propunha-se a ‘cobrir’ o país inteiro no conjunto balzaquiano da comédia brasileira" (W. M. "Norte e Sul". Pontos de vista 15. 2004).

A idéia, por inesperado, lembrei àquela altura, repercutiria em pleno Simbolismo, o que não passou despercebido a Adolfo Caminha: a capa do Missal, de Cruz e Sousa, trazia a expressão Brasil-Sul. num destaque vivo e pretensioso": "Positivamente, Cruz e Sousa quis dividir o Brasil, como alguém o fizer (sic), em duas grandes regiões literárias: a região norte e a região sul, obedecendo cada uma às leis especiais de clima, da topografia e de sociabilidade (sic) que caracterizam os países e que constituem o meio, isto é, o conjunto de circunstâncias capazes de modificar a própria raça".

A doutrina foi lançada quatro anos depois dos Sonhos d’ouro em que Alencar programava a comédia brasileira. Em seu "período orgânico", dizia ele, a literatura nacional contava três fases: "A primitiva, que se pode chamar aborígene, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada (…). Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo. (…) O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura (…). A ele pertencem o Guarani e as Minas de prata (…). A terceira fase … começada com a independência política, ainda não terminou (…)".

A novidade de Franklin Távora, refletindo o pensamento cientificista da época, constitiu em substituir a teoria histórica de Alencar pela teoria geográfica, mais específica, mas também mais limitada. Tudo isso adquiriu caráter orgânico em 1902, quando as suas três novelas apareceram em volume único, com o título geral de Literatura do Norte (O Cabeleira, O matuto e Lourenço). Cláudio Aguiar qualifica-a de "apenas uma opinião" – mas é de opiniões que se fazem a crítica e a história literária. Havia, contudo, subliminalmente, no seu pensamento o preconceito ainda perpetuado em nossos dias, já então denunciado por José Veríssimo, "concepção romântica" segundo a qual "só é Brasil e brasileiro o que, em qualqueer das nossas feições nacionais, deriva imediatamente da mestiçagem, física e moral, do português com o índio e com o negro. (…) Mas se o Brasil foi, e ainda é isso, ou sobretudo isso (…) não pode ser só isso". Na concepção implícita de Franklin Távora, observa Cláudio Aguiar, o Norte "não era apenas a atual região política conhecida nos nossos mapas (…). Era como se houvesse dois Brasis dentro de um só, o do Norte e o do Sul".

Programa duplamente ambicioso (pelos aspectos doutrinários e polêmicos), condenado, como o de Viana Moog, a um destino contraditório: ser contestado no momento mesmo em que se enunciou através dos anos. O que começou a acontecer desde o lançamento, nas palavras de José Veríssimo: "nesta concepção (…) há, parece-me, com uma parte mínima de verdade (sic), uma ilusão de bairrista e de romântico", sem esquecer a punhalada final: "Geograficamente, Norte e Sul são distintos, e talvez, ao contrário do sentimento bairrista de Franklin Távora, sob o aspecto da beleza e do pitoresco, com vantagem do Sul".

Já no momento da morte, o nome e a personalidade de Franklin Távora começaram a desmonetizar-se. Eis, para concluir, alguns "pequenos fatos significativos", como os chamava Taine: alegando tecnicismos estatutários, seus colegas do Instituto Histórico acharam meios de recusar uma pensão à viúva e aos filhos, deixados na miséria, propondo que o pedido fosse encaminhado ao Governo Imperial. E como Henrique Raffard sugerisse que, ao menos, se fizesse uma campa, "ficando livre a cada sócio concorrer com a quantia que quiser e puder para auxiliar a família", o mesmo implacável César Marques, que já havia feito derrotar a primeira proposta, tratou de impedir que passasse a segunda. Resultado de tanta generosidade, até hoje não se sabe onde foi enterrado.

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