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Está a tempo de atirar para a lata de lixo da História duas tenazes inverdades que se perpetuam e repetem em livros e ensaios dos que a aprenderam de oitiva ou pelo prisma das distorções ideológicas: uma delas, a "fuga" precipitada do futuro D. João VI à notícia de que as tropas napoleônicas se posicionavam na fronteira, e, outra, a da indigência cultural da Colônia imposta pela política obscurantista da Metrópole. São idéias-feitas desmentidas há exatamente um século por Oliveira Lima, autor que merece leitura e releitura (Dom João VI no Brasil. 3ª ed. Rio: Topbooks, 1996).

Ora, se o embarque da Corte ocorreu na desordem e confusão inevitáveis em tais circunstâncias, a retirada do governo para o Brasil era decisão tomada com grande antecedência, e isso, observa Oliveira Lima, num país incapaz de planejamento, antes caracterizado pelas improvisações precipitadas. Só o fato de não terem sido esquecidos no cais de Lisboa nem os caixões da tipografia recém-adqüirida na Inglaterra, nem os que continham os milhares de volumes da Biblioteca Real, é "uma prova adicional do planejamento da mudança da Corte para o Brasil e não de uma fuga desordenada" (Rubens Borba de Moraes. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. Segunda edi-ção. Ap. de José Mindlin. Brasília: Briquet de Lemos, 2006).

A Biblioteca Real, transferida para o Brasil em três viagens sucessivas, "era a segunda que formava a casa real. A primeira foi destruída no terremoto de Lisboa em 1755. D. José [de Azevedo, mais tarde visconde do Rio Seco] organizou outra, chamada de Ajuda, valendo-se de compras e doações. D. Maria I, por alvará de 12 de setembro de 1805, ordenou que, de todos os papéis impressos nas oficinas tipográficas do reino, um exemplar fosse remetido à Real Biblioteca. Era um livraria rica e versátil. Continha mais de cem incunábulos, entre eles dois exemplares da Bíblia de Mogúncia de 1462. Muitas eram as edições preciosas, raras na época. Abrangia, além disso, muitas primeiras impressões portuguesas e espanholas, livros de horas iluminados, mapas e gravuras [...]", tudo estimado em 60 mil volumes, além das gravuras, manuscritos e mapas.

Acentue-se mais uma vez, como índice expressivo das prioridades portuguesas naquele momento angustioso, que logo depois do terremoto e como parte da reconstrução de Lisboa, a Biblioteca começou a ser reconstituída, mentalidade bem diferente da brasileira no século XX, particularmente no que se refere à nossa celebrada capital, a julgar pelo que escreve Edson Nery da Fonseca: "Brasília foi outra oportunidade perdida pela biblioteconomia brasileira para afirmar-se como força social. Na memória do Plano Piloto, Lúcio Costa fala, vagamente, de uma biblioteca no se-tor cultural da cidade. Perguntei uma vez ao genial urbanista e arquiteto por que as unidades de vizinhança tinham tudo – escolas, clubes, igrejas, ruas de comércio local, cinemas, bancas de revistas, postos de gasolina, supermercados – menos bibliotecas. Ele me confessou que se esquecera [sic], ‘porque esse negócio de biblioteca popular nunca funcionou no Brasil’" (Acertos e desacertos da biblioteconomia no Brasil. Recife: Flamboyant, 1993).

Estava funcionando pelo menos há três séculos nos colégios religiosos. Contudo, nos tempos de D. João VI, diz Rubens Borba de Moraes, "não existiam somente a Biblioteca Real e as dos conventos de São Bento, São Francisco e outras ordens religiosas. A divulgação da cultura não estava presa unicamente às livrarias dessas instituições. Funcionavam na cidade diversos institutos de estudos superiores criados pelo governo, tais como a Real Academia Militar, o Laboratório Químico-Prático, a Academia Médico-Cirúrgica, o Arquivo Militar, a Academia Real dos Guardas-Marinha. As finalidades dessas instituições exigem a formação de biblioteca".

O que nos conduz à personalidade e ao governo de D. João VI, herói civilizador como demonstrou Oliveira Lima. Mais civilizador do que herói no sentido convencional da palavra e, por isso mesmo, tanto mais civilizador, valendo a pena reler Euclides da Cunha num dos seus fulgurantes perfis: "D. João VI. um medíocre, foi um predestinado. Avesso a bravatas, alma ingênua e comodista, ornada de uma placabilidade burguesa, abatido ademais pelas desordens de um lar infeliz, entristecido pela figura da velha rainha-mãe D. Maria I, que enlouquecera – a inércia e a visão restrita foram-lhe atributo preeminente: permitiram que lhe agisse intacta, sobre o ânimo, a vontade de alguns homens superiores que em boa hora o rodeavam. Analisando-se mais intimamente essa admi-nistração surpreendente, ver-se-ia que aquela figura histórica tão deselegante e vulgar, de D. João VI, lançou todos os fundamentos essenciais do nosso destino" ("Da Independência à República", em À margem da historia.Rio: ABL, 2005).

Abramos aqui um parêntese para fazer justiça ao maior daqueles "homens superiores" que cercavam o Regente – outro grande herói civilizador, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro Conde de Linhares, a quem coube, naquele momento o papel mais importante em nosso processo civilizatório, no qual Euclides da Cunha destacava dois atos decisivos: o que, em 1808, franqueou os portos brasileiros ao comércio internacional e o que revogou o alvará de 1785, que ordenara o fechamento de todas as fábricas da Colônia, decisões equivalentes a "duas revoluções liberais e bastaram para enobrecer-lhe o nome de Regente".

D. João VI foi, "em primeiro lugar, um estóico... depois um convencido e um sincero [...]". Para além do seu extraordinário elenco de realizações culturais, lembramos, para o que agora nos interessa, a função da Impressão Régia, cujo programa editorial compara-se, com vantagem, ao de muitas editoras posteriores e até nossas contemporâneas.

Como observa Rubens Borba de Moraes, "o papel da Impressão Régia foi o de uma excelente editora, publicou dezenas de livros de real valor cultural, fez conhecer os poetas famosos... imprimiu os versos dos nossos, lançou o romance e a novela no Brasil, resolveu o problema didático para o ensino superior... cumpriu sua missão principal quanto à legislação. Não exagero afirmando que somente na segunda metade do século XIX, quando as editoras de Leuzinger e Laemmert estavam no auge, é que tivemos editoras comparáveis". Não eram, tampouco, edições rústicas como ainda hoje se encontram no mercado: "Examinando esses livros, esses folhetos de poucas páginas, ficamos admirados com a qualidade dos impressos. São composições de uma sobriedade, de um bom gosto de fazer inveja aos nossos impressores atuais. Raramente, muito raramente na verdade, a tipografia brasileira atingiu um padrão tão alto de elegância e beleza".

O que será, sem dúvida, o índice mais alto de civilização, a civilização do livro e da Biblioteca que iniciava, na prática e em profundidade, o processo da Independência.

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