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Revista de estudantes como tantas outras, a Nitheroy nem mesmo chegou ao mal dos sete números em que quase todas costumam desaparecer, ocupando, entretanto, lugar privilegiado em nossa história literária, dela datando, por convenção, o início do Romantismo (Nitheroy. Revista brasiliense. Ciências, Letras e Artes. Ed. fac-similada em CD-ROM. Org. Ana Beatriz Demarchi Barel. Coordenação editorial: Maria Aparecida Ribeiro. Coimbra: Minerva, 2006).

Não obstante serem Domingos José Gonçalves de Magalhães e o grupo da Nitheroy "os despertadores da consciência romântica", escreve Antônio Cândido, "ocorrem antes deles, e ao lado deles, prenúncios não apenas nos temas, na sensibilidade, na forma, como também na própria doutrina literária". Eram "prenúncios" e não "anúncios", sem o caráter de manifesto deliberado proposto por Magalhães, cujo "Ensaio sobre a história da literatura do Brasil" é, de fato, a proclamação da nossa independência literária: "Não se pode lisonjear muito o Brasil de dever a Portugal sua primeira educação, tão mesquinha foi ela que bem parece ter sido dada por mãos a varas e pobres; contudo, boa ou má dele herdou [...]. A poesia brasileira não é uma indígena civilizada; é uma grega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada no Brasil; é uma virgem do Hélicon que, peregrinando pelo mundo, estragou seu manto, talhado pelas mãos de Homero, e sentada à sombra das palmeiras da América, se apraz ainda com as reminiscências da pátria, cuida ouvir o doce murmúrio da castalha, o trépido sussurro de London e de Ismênia, e toma por um rouxinol o sabiá que gorjeia entre os galhos da laranjeira [...]. Tão grande foi a influência que sobre o engenho brasileiro exerceu a grega mitologia, transportada pelos poetas portugueses, que muitas vezes poetas brasileiros se metamorfosearam em pastores da Arcádia, e vão apascentar seus rebanhos imaginários nas margens do Tejo, e cantar à sombra das faias".

Quadro tanto mais sugestivo quanto retoma literalmente a lição de Ferdinand Denis, autor do primeiro "manifesto" romântico (que Magalhães com certeza havia lido), lançando, também, as linhas estruturais do Indianismo e corrigindo, por antecipação, o erro ornitológico de Gonçalves Dias: o sabiá só canta em árvores baixas, como a laranjeira (o que não escapou a Casimiro de Abreu), não em majestosas palmeiras. Note-se que, como todo profeta dos novos tempos, ele se opunha expressamente à poética dominante, isto é, o Arcadismo, ou seja, o Sena em face do Ribeirão do Carmo, assim tornando obsoleto pela Ipiranga.

Tudo isso deve ser posto no contexto social, político e intelectual implantado pela vinda da Família Real, dinamizadora de um irrepressível movimento emancipador. Gonçalves de Magalhães, ou o Pedro I às margens do Sena, consciente de outra idade histórica: "há no homem um instinto oculto que o dirige a despeito dos cálculos da educação, e de tal modo o aguilhoa esse instinto que em seus atos imprime um certo caráter de necessidade, a que chamamos ordem providencial ou natureza das coisas. O homem colocado diante de um vasto mar, ou no cume de uma alta montanha, ou no meio de uma virgem e emaranhada floresta, não poderá ter por longo tempo os mesmos pensamentos, as mesmas inspirações, como se assistisse aos olímpicos jogos, ou na pacífica Arcádia habitasse. Além desses materiais circunstâncias, variáveis nos diversos países, que muito influem sobre a parte descritiva e caráter da paisagem poética, um elemento há sublime por sua natureza, poderoso por sua inspiração, variável porém quanto à sua forma, base da moral poética, que empluma as asas do gênio, que o inflama e fortifica, e ao tráves do mundo físico o eleva até Deus; esse elemento é a religião".

Aí está toda a temática romântica: Deus, a religião, a natureza, a floresta, a montanha, tudo conduzindo às meditações do passeante solitário. Claro, o nacionalismo de Magalhães é outra forma de exotismo substituindo a mitologia grega (de que a França mal acabara de sair) e buscando sua novidade, mas também sua autenticidade, no Chateubriand dos Natchez e dos Martyrs. Revelando, embora, sensível retardamento, ele tinha mais razão do que supunha ao afirmar que o Brasil era "filho da civilização francesa" e, como nação, "filho dessa revolução famosa que abalou todos os tronos da Europa, e repartiu com os homens a púrpura e o cetro dos reis". Magalhães, o carbonário, antes de ser o romântico arrependido, como o chamou Alcântara Machado.

Pouco inclinado aos entusiasmos de momento, o severo José Veríssimo acentuou o "caráter áulico da nossa literatura em todo o período colonial, e ainda depois, quando, com a efervescência literária do Romantismo, o Imperador se fez decidido protetor das letras nacionais". E decidido protetor de Gonçalves de Magalhães, como é sabido.

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