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Ao completar 100 anos, Claude Lévi-Strauss vê-se na situação dos grandes pensadores que, a exemplo de Descartes ou Einstein, mudaram os paradigmas do pensamento e respectivas estruturas mentais, fazendo do século 20 e posteriores uma realidade completamente diversa do que haviam sido até então. A antropofagia, diz ele, por exemplo, não é mais do que o contrário da "antropoemia", uma e outra não passando de sistemas sociais defensivos. Pela primeira, algumas sociedades vêem na absorção de certos indivíduos detentores de forças temíveis o único meio de neutralizá-las e mesmo de aproveitá-las; pela segunda, "postas diante do mesmo problema, escolheram a solução inversa, que consiste em expulsar esses seres temíveis para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem contato com a humanidade em estabelecimentos destinados a esse fim".

Muitos bons espíritos, sem excluir reputados filósofos contemporâneos, ficarão surpreendidos ao saber que o regime penitenciário não é, no fundo, senão a forma moderna da antropofagia, mas o seu espanto será ainda maior quando souberem que esta última é muito mais humana e mais lógica do que aquele, visto que prefere consumir alguns dos nossos semelhantes em lugar de mutilá-los física e moralmente. Como Proust (com quem muito se assemelha pela originalidade de estilo), Lévi-Strauss tem o talento da "minúcia significativa", o gênio da análise e o dom de mostrar, sob as aparências imediatas, a realidade e a substância profunda das coisas. E dizer que Foucault pensava estar inventando a roda!

Para Lévi-Strauss, apaixonado discípulo de Rousseau, "o selvagem explica o homem" – da mesma forma por que, em grande parte, o homem explica o selvagem. É certo que a sua visão difere da de Rousseau quanto à informação que a enriquece e quanto ao realismo: a filosofia setecentista tinha sempre diante dos olhos a Utopia, enquanto a experiência científica de Lévi-Strauss antes o conduz a um certo ceticismo. Isso não impede que numerosas páginas "rousseaunianas" se encontrem em Tristes Trópicos: assim a análise, parcial e injusta, mas admirável e estimulante, referente à invenção e às funções da escrita: para ele, o único fenômeno que fielmente acompanhou a escrita "foi a formação das cidades e dos impérios, isto é, a integração num sistema político de um número considerável de indivíduos e sua hierarquização em castas e classes. Tal é, em todo caso, a evolução típica a que assistimos desde o Egito até a China no momento em que a escrita faz a sua aparição: ela parece favorecer a exploração dos homens antes de iluminá-los. Essa exploração, que permitia reunir milhares de trabalhadores para obrigá-los a tarefas extenuantes, explica melhor o nascimento da arquitetura do que a relação direta examinada há pouco. Se minha hipótese for exata, é preciso admitir que a função primária da comunicação escrita é a de facilitar a servidão. O emprego da escrita para fins desinteressados, em vista de tirar satisfação intelectuais e estéticas, é um resultado secundário, se é que não se reduz, no mais das vezes, a um meio da reforçar, de justificar ou de dissimular o outro. [...] A luta contra o analfabetismo se confunde, assim, com o aumento do controle dos cidadãos pelo Poder. Pois é preciso que todos saibam ler para que este último possa dizer: ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a conhece. Do plano nacional, o empreendimento passou para o plano internacional, graças à cumplicidade que se ligou entre jovens estados – postos diante de problemas que foram os nossos há um ou dois séculos – e uma sociedade internacional de possuidores, inquieta pela ameaça que representavam para a sua estabilidade as reações de povos mal capacitados pela palavra escrita a pensar em formulas modificáveis à vontade e a fornecer base para os esforços de edificação. Acedendo ao saber acumulado nas bibliotecas, esses povos se tornam vulneráveis às mentiras que os documentos impressos propagam em proporção ainda maior".

É uma visão nova do Brasil que nos oferece o autor de Tristes Trópicos: colocar o índio no circuito da civilização, estudar a sua organização social e o sentido profundo das funções de chefia, analisar o sistema de trocas ou a significação da decoração corporal, mostrar nas suas crenças a carga universal que denunciam, são outros tantos aspectos da sua inestimável contribuição. E tudo isso, como ficou dito, com uma arte consumada de escritor. "Inimigo" da palavra escrita, nem por isso deixa Levi-Strauss de manejá-la com fina inteligência e aguçada sensibilidade. Nesse particular, todo o volume constitui uma unidade e não haveria propriamente trechos a destacar. Mas o leitor brasileiro poderá, talvez, ultimamente, comparar a sua floresta amazônica com a de Euclides da Cunha, por exemplo; "Vista de fora, a floresta amazônica parece um amontoado de bolhas congeladas, um montão vertical de intumescências verdes [...]".

Não querendo ser confundido com qualquer reles "literato" ele rejeitou o Prêmio Plume d’Or que lhe foi conferido ao aparecimento do livro e que eu, de minha parte, não hesitaria em reconferir-lhe...

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