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Nas artes e nas letras, toda proposta de "vanguarda" traz implícita nela mesma o vírus da mistificação na exata medida em que é, de fato, contraditória nos seus próprios termos: a vanguarda como projeto definitivo de expressão ou de expressão definitiva, está condenada a academizar-se e, procurando instituir a "liberdade de pesquisa estética" (para lembrar o postulado de Mário de Andrade), estabelece de cada vez um novo cânone obrigatório. As vanguardas de hoje são o academismo de amanhã, assim como o academismo de hoje foi a vanguarda de ontem ou de anteontem.

O conceito de transgressão e marginalidade precisa ser reavaliado, escreve Affonso Romano Sant’Anna (foto): Pouca coisa é tão ambígua, tão esperta e tão sintomática dos nossos tempos, pois há muito que a marginalidade saiu da margem há muito que o sistema se deixou seduzir pela transgressão, a oficializou, a transformou em academia e palavra de ordem. Enfim, a transgressão foi legitimada. E a marginalidade há muito está no poder" (A cegueira e o saber. Rio: Rocco, 2006). Até as "vanguardas" ideológicas e políticas se academizaram e emburguezaram, como se sabe.

A arte chamada indiscriminadamente de "moderna", forma paradigmática de desafio às convenções aceitas, foi utilizada pelo Departamento de Estado norte-americano como arma de desafio durante a guerra fria, para demonstrar a superioridade de arte capitalista em face do desolador realismo soviético. Marxistas radicais "derivaram para apoiar a arte que nos Estados Unidos chegou a ser a arte oficial da mesma maneira que os artistas marginais tornaram-se emblema do sistema". Pollock foi qualificado de "herói cultural" por Barbara Rose. Assim, "de compromisso em compromisso, de ajustamento em ajustamento, a ideologia da vanguarda coincidiu com a ideologia dominante" (Serge Guilbaut, citado por Affonso Romano de Sant’ Anna).

É certo que, com a guerra de 1939, o eixo artístico passou da europa para os Estados Unidos, a tal ponto que Nova Iorque é hoje o centro privilegiado para o reconhecimento universal dos artistas. Aos incautos, adverte Affonso Romano de Sant’ Anna, "é preciso alertar: comparar Picasso a Pollook ou colocá-los na mesma linha de qualidade, é um grosseiro erro de avaliação estética. Essa foi a palavra de ordem do establishment político-estético nos anos 50. Mas está na hora de estornarmos a ‘idéia de arte’ que os americanos ‘roubaram’ ". O que , bem entendido, abre a porta para novos debates, propostos agora por este volume.

Se a modernidade, acrescenta ele, cultivou a "ideologia da excentricidade", o desafio será "nem se acomodar ao centrismo clássico nem se exilar na excentricidade moderna. O difícil é enfrentar as armadilhas do ‘centramento’ tanto no centrismo quanto no ‘excentrismo’ que escamoteia um outro centro. [...] Assim como a cultura da excentricidade pode levar à paralisia e morte em vida, também a vertigem da excentricidade pode levar à aporia e ao caos". Em suma, é preciso ter a coragem de usar a palavra certa: nos domínios da chamada "arte moderna", há muita empulhação, como se dizia ao tempo de Machado de Assis: "A questão central então é esta: temos que olhar a chamada arte moderna com olhos mais críticos e menos subservientes. Entre muita coisa boa, há muita bobagem. E o que é mais intrigante: por que passados tantos anos não se conseguiu fazer uma decantação do que é bom e durável, daquilo que é ruim e perfunctório? Quando alguém terá o desassombro de dizer que Duchamp tem coisas instigantes, mas muita tolice? Quem terá a sacra ousadia de mostrar equívocos dentro da genialidade de Picasso?"

De minha parte, tenho uma explicação mais rasteira (?): há muito dinheiro envolvido, já que estamos no mundo dos mercadores com sua influência na formação das modas, na opinião crítica e até no estilo dos artistas. A situação foi desmistificada num extraordinário conto brasileiro, sátira implacável das galerias de pintura, curadores de museus e críticos que não querem perder o último trem, Muitos especialistas, dos que se extasiam pelo branco sobre branco, viram nos quadros de Darbot uma intenção religiosa, daí resultando sua glória internacional, mistificação deliberada em que todos se mancomunaram. O fictício Darbot, pintor desconhecido nascido na França em 1872 e redescoberto por acaso, tornou-se o grande ídolo da pintura moderna (Victor Giudice. O Museu Darbot e outros mistérios. Rio Leviatã, 1994).

Causa e consequência desses novos paradigmas (na terminologia de Thomas S. Kuhn), o espírito crítico caiu em estado de progressiva letargia pelo medo de parecer obscurantista e reacionário, pecados mortais e irremissíveis ao olhos dos fariseus.

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