Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Wilson Martins

No tempo das livrarias

Nossas primeiras livrarias eram lojas de conveniências em que se vendiam, juntamente com livros importados, as mais variadas mercadorias (Ubiratan Machado. Pequeno guia histórico das livrarias brasileira. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2009). Assim, por exemplo, "em meados do século 18, Vila Rica era a maior e a mais rica cidade brasileira. Os seus cinquenta mil habitantes formavam uma população heterogênea e instável de funcionários, advogados, comerciantes [...]. A capital das Gerais e sua vizinha, Mariana, já tinham uma elite intelectual, que alcançaria o brilho máximo na década de 1780, com os poetas da escola mineira". Em outras palavras, a essa altura e em termos intelectuais, Vila Rica estava exercendo o papel que seria tomado pelo Rio de Janeiro nos séculos seguintes, nomeadamente no que se refere às livrarias.

Em Minas, o comércio de livros "era razoável, a se julgar pelo que sabemos da livraria do capitão Manuel Ribeiro dos Santos, ativa em 1750, talvez a primeira de Minas e uma das primeiras do Brasil", na qual se antecipava ao que seria logo depois a norma no Rio de Janeiro e em São Paulo: "A loja comerciava com produtos da terra (provavelmente queijos, doces, sabão) e importados de Portugal: roupas, chapéus, botas, velas, cera, cobertores". E livros, claro está: Santos costumava encomendar vários exemplares de uma mesma obra, a maioria de direito, e às vezes repetia o pedido".

Isso reflete a escassez do público interessado em literatura geral, acompanhada pela sensível abundância de livros jurídicos: terra de bacharéis, demandistas e formalismo jurídico. Tudo acompanhado, por afinidade, por grandes e variadas papelarias. No Recife, por exemplo, a livraria mais antiga era a de Manuel Cardoso Aires, membro de uma família da aristocracia dos senhores de engenho pernambucanos, endinheirados e de fortes tradições intelectuais. Abriu as portas em 1808 [...] vendia de tudo um pouco: envelopes, obreias, contas de pedra, histórias do Trancoso, tabuadas, livros de poemas, papel de seda para enfeitar bolo, romances, tratados de retórica [...] tudo destruído num incêndio em 1871.

Paralelamente, criaram-se no Rio de Janeiro várias dinastias de livreiros e editores franceses, de longa e profunda influência em nossa vida intelectual, muitos exercendo implicitamente a missão de heróis civilizadores, concomitante com a transferência da Família Real: "Em 1808, quando D. João VI chegou ao Brasil, o Rio de Janeiro tinha quatro livrarias, lugar onde se vendiam os mais variados produtos: objetos litúrgicos, chá, porcelana, cartas de jogar e até livros. A mais conceituada de todas era de Paul Martin Filho, chegado à cidade no final do século 18 [...]. Paul Martin foi o primeiro editor brasileiro, lançando os primeiros romances publicados no Brasil, em geral traduções de obras francesas. Impressas na Impressão Régia. O principal concorrente de Martin era Saturnino da Veiga, pai do livreiro Evaristo da Veiga [...]" – com o que a história das livrarias começa a se confundir, e cada vez mais, com a da vida política, social e partidária. Era nas suas salas que se conversava e conspirava.

A de Evaristo da Veiga, observa Ubiratan Machado, era a "mais politizada e politiqueira do século 19 brasileiro. Livreiro e jornalista, Evaristo respirava política 24 horas por dia, mas sem descurar dos negócios. Tudo indica que a sua loja de livros tornou-se logo a mais movimentada da cidade, oferecendo novidades que só ali eram encontradas, sobretudo obras de política e economia. Editor da Aurora Fluminense, Evaristo redigia o jornal na própria loja, que se tornou um ponto de conspiração política. A frequência era o que havia de mais seleto na inteligência brasileira: Diogo Antônio Feijó, Teófilo Otoni, Paula Sousa, entre muitos outros. [...]. Os inimigos ficavam de olho [...]. Em 1832, quando o debate seguia animado na livraria, alguém disparou diversos tiros da rua. O jornalista e três amigos ficaram feridos", mas ele não interrompeu as suas atividades habituais, falecendo precocemente em 1837.

Pouco a pouco, pela força natural das coisas, as livrarias se especializaram no comércio de livros, vendendo-os e editando-os. No século 19, a mais famosa e de maior prestígio foi, sem dúvida, a Garnier [...]. Ao ser inaugurada em 1845 também funcionava como bazar, vendendo charutos, material de papelaria, estatuetas. Na década de 1860, já era o ponto de encontro preferido dos intelectuais [...]. Acompanhando literalmente a sucessão das modas literárias, pode-se pensar que, no século 20, papel semelhante coube à José Olympio, editora por assim dizer oficial do Modernismo, já nas fronteiras da eletrônica, com o que passamos a viver num brave new world.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.