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São ambíguas e obscuras as fronteiras entre a observação e a imaginação no livro de Muriel Cerf sobre o Brasil (Amérindiennes. Paris: Stock, 1979), sendo certo, entretanto, que a segunda predomina sobre a primeira e que, com referência ao estilo literário, a autora está longe de ser a "neta de Jean Giraudoux" que nela quiseram ver os editores parisienses. O francês, segundo o célebre epigrama, é alguém que ignora a geografia, o que, diga-se desde logo, não é o caso de Gilles Lapouge, cujo conhecimento do Brasil data de várias décadas, desde que aqui residiu como correspondente de jornais franceses até agora, quando vem exercendo as mesmas funções em Paris para um grande jornal brasileiro, sendo autor, nomeadamente de um Dicionário amoroso Brasil, além de uma dezena de outros livros, em particular Equinocciales (1977), viagem filosófica que bem pode ser vista como a sua autobiografia, paralela à que Lévi-Strauss escreveu com Tristes tropiques.

Sensível ao pitoresco e ao insólito (a que nenhuma nação é estranha, cada uma no seu lugar próprio), Lapouge fez de sua experiência brasileira uma meditação existencial, expressa num estilo literário da mais alta qualidade e apoiada numa agudeza de observação que procura nos fatos o sentido dos fatos. A chave de todo o volume está na última seção intitulada, precisamente, "Voyages" que, em aparência, nada tem a ver com o Brasil: "Não vivemos na realidade histórica, diz a epígrafe de Jean Giono, mas na realidade imaginária" Contudo, essa realidade imaginária não é a do mundo exterior (a de Jean Giono, construída com base nos mapas militares do Estado Maior), mas da nossa sensibilidade: é assim que o Brasil se transformaria na autobiografia de Lévi-Strauss e de Gilles Lapouge, precisamente porque eles o assimilaram, enquanto objeto, na sua real realidade (expressão desses observador imaginário de realidades existentes que se chamava Carlos Fradique Mendes).

O processo contraditório da mente brasileira, para citar apenas esse exemplo, é por ele fixado em poucas linhas lapidares: "O Brasil é uma invenção da Renascença, como a lei da gravidade, a perspectiva e a circulação do sangue, essa paixão da modernidade nada perdeu até hoje de sua energia. Mas, o Brasil é também o escaler de salvamento em que a Idade Média, ao ajustar contas com as novas ideias, despejou os seus detritos, seus engrimanços, suas demências e alucinações".

Daí por exemplo, a quatro séculos de distância, o "duplo mistério do babaçu e da laranja": por uma aberração inexplicável, esse país deficiente em indústrias e infraestrutura, sem moradias e sem transportes, inventou a mais perfeita máquina de descascar laranjas, usada pelos vendedores ambulantes, mas até hoje não conseguiu mecanizar a quebra do babaçu, cujas possibilidades de exploração industrial são inesgotáveis. Esse Brasil arcaico que se recusava a desaparecer cedeu espaço ao processo de modernização intelectual ligado à criação da Universidade de São Paulo e às ligações de Gilles Lapouge com o Brasil [Fernand Braudel] partira para o Brasil com um grupo de franceses para fundar a Universidade de São Paulo. Eu o reencontrei em 1948, quando retornou à França. Naquela época, Júlio de Mesquita Filho, diretor do Estado, havia-lhe dito: "Encontre um jovem jornalista francês para vir trabalhar no meu jornal".

É por essa junção de acasos que a biografia de Gilles Lapouge passou a integrar a história do nosso país: "O Brasil tem uma importância capital na minha obra até porque ¾ da minha vida estão ligados ao País. Graças ao Brasil eu me interessei pelo mundo e comecei a viajar. Não fosse isso eu seria um francês normal, sem graça, de uma família francesa desde sempre". Foi isso nos anos de 1950, durante o governo Dutra: "A França saía da guerra, portanto eu estava impregnado de um país cinza, sombrio [...]. Deixei tudo isso para trás, porque no Brasil as cores mudaram. Foi uma revelação extraordinária, do ponto de vista da beleza, da sensualidade, da capacidade de estar aberto ao outro enfim da joie de vivre".

Sem esquecer que tudo isso resultaria, com Equinocciales, numa obra-prima da bibliografia brasileira.

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