• Carregando...

É livro que estrangeiros e brasileiros escrevem e reescrevem ao longo dos séculos sobre um país que se define pelas qualidades dos seus defeitos e pelos defeitos das suas qualidades, a chave do mistério consistindo em perceber que defeitos e qualidades não são antagônicos e excludentes uns dos outros, mas complementares entre si. Sem aquelas qualidades não haveria tais defeitos, e reciprocamente. Terra de contrastes, chamou-a Roger Bastide, cada contraste conferindo sentido aos demais, justamente por serem simultâneos: a coerência brasileira é feita de incoerências, porque somos ufanistas (como todos os povos) e também antiufanistas, no que nos distinguimos dos demais.

Paradigma dos ufanistas, o conde de Afonso Celso inventou o nome e a coisa, simétrico e Paulo Prado, no extremo oposto da escala, que, aliás, considerava o Retrato do Brasil como livro otimista, embora acrescentasse imediatamente tratar-se do "otimismo do médico que quer curar, ou do cirurgião". Era um otimismo pessimista, expresso na famosa fórmula em que exprimia a sua confiança no futuro – "que não pode ser pior do que o passado". Se o Retrato do Brasil foi por ele apresentado como um quadro impressionista, o de Alain Rouquié pertence à tradição do grande realismo pictórico, vigoroso nas pinceladas, objetivo na visão, insuperável no conhecimento da matéria (sem excluir os brasileiros) e modelar na técnica de exposição (Le Brésil au XXIe. siècle. Naissance d’um nouveau grand. Paris: Fayard, 2006).

Tomemos, para exemplificar, a arte entre todas delicada do retrato contemporâneo no calor da hora. "Não foi o Partido dos Trabalhadores que ganhou, mas claramente Luís Inácio da Silva, candidato no segundo turno de uma grande coalizão de partidos. De fato, o eleitorado votou em Lula, seu programa e sua pessoa. Sua vitória foi a de um homem, de uma personalidade transformada em mito político". Foi também um divisor de águas na política nacional: "Em 1987, quando se apresentou à eleição para governador de São Paulo, chegou em quarta posição... o povão teria pensado que não valia a pena sufragar um deles. [...] Em 2002. os eleitores das classes populares não acharam inútil sufragar um deles – nem indispensável um membro da classe dirigente".

Nesse contexto, e à luz do que aconteceu depois que o livro foi escrito, deve-se ler o subcapítulo "Um partido ‘diferente dos outros’ ... levado à pia batismal pelo Gotha da intelligentsia brasileira, ao redor de Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido, Florestan Fernan-des, Mário Pedrosa, entre outros... ligado ao patrimônio espiritual do país... atraiu desde logo jovens universitários já prestigiosos [...]". Quem o diria! quem o teria acreditado! Desejando passar por partido de esquerda, é na verdade quase epigramático falar na ideologia do PT: "embora se deseje ecumênico e aberto", escreve Alain Rouquié, "não é uma frente das esquerdas, acolhendo individualmente militantes vindos dos partidos marxistas, recusa-se a qualquer fu-são com os dois partidos comunistas, ortodoxo e pró-chinês. O que não impede certos ex-marxistas da ALN de figurar nos quadros dirigentes... o mesmo acontece com ex-guevaristas... os trotskistas estão particularmente bem representados em todas as tendências do partido, tanto na maioria (centrista) quanto à esquerda".

Claro, nas estruturas mentais e históricas de um francês, tais noções fazem um sentido completamente diverso, se não oposto, ao que têm na rústica realidade brasileira. Basta referir o episódio das guerrilhas, que, por um momento, e no espírito dos militantes, pareceram ao ponto de decidir os destinos nacionais. Ora, com a vitória do PT, obtida pelos meios mais canonicamente burgueses, os guerrilheiros instalaram-se no Palácio do Planalto, onde se têm dado muito bem, sem quaisquer perceptíveis dramas de consciência. Alain Rouquié dedica algumas páginas à legendária "revolução dentro da revolução": "no mais forte da ação revolucionária, em 1969 – 1970, os grupos de guerrilha jamais reuniram, sem dúvida, mais de um milhar de homens, mal armados, mal equipados".

Fato curioso, observa ele: num país em que fidelidade aos clubes de futebol passa de pai para filhos, os políticos mudam de partido com a mesma facilidade com que mudam de camisa (trocadilho espontâneo, mas irresistível).

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]