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Escrevem-se contos e crônicas como se escreviam sonetos ao tempo da Escola Parnasiana – escola em que os mestres eram poucos e numerosos os discípulos, nem todos bem dotados. Não bastassem os livros individuais, estamos na época das antologias, tão abundantes que já começam a se envergonhar delas mesmas, como Linaldo Guedes adverte no prefácio à mais recente, pelo menos a mais recente no momento em que escrevo: "Todas as tendências e estilos da nossa moderna prosa de ficção estão contemplados neste livro, que não pretende, é bom que isso fique bem claro, ser uma antologia, mas sim uma reunião de textos de autores importantes abordando a questão da violência". Linaldo Gomes é jornalista, escritor e editor de um suplemento literário, mas, mesmo assim, é preciso dizer que a reunião de autores e textos diversos com temática comum continua a ser uma antologia – mais uma das tantas que se encontram nas livrarias (Rinaldo de Fernandes, org. Contos cruéis. As Narrativas Mais Violentas da Literatura Brasileira Contemporânea, São Paulo: Geração Editorial, 2006).

Já em 1883 o título apareceu numa coletânea de Villiers de Iísle Adam, nada permitindo supor que tenha havido por parte de Rinaldo de Fernandes qualquer reminiscência voluntária ou involuntária. A antologia é hoje, no Brasil e no mundo, espécie editorial reconhecida, o que, no que nos concerne, é mais uma das nefastas influências estrangeiras, como diria aquele personagem de Artur Azevedo. É a literatura das famílias ou para usar em casa, destinada antes aos amadores do que aos amantes das belas-letras, a ser ingerida em doses homeopáticas, a tantas páginas por dia, ou por semana, ou por mês, até que o próprio volume seja afinal atirado para o canto. Não devemos minimizar, entretanto, a sua utilidade didática, poupando professores e alunos de leituras exaustivas e, mesmo, do cuidado de procurar as obras originais. Há, também, as que resultam dos concursos de inéditos, receita garantida para produzir a subliteratura e estimular os falsos talentos, tão ingênuos quanto bem intencionados. Também as há para todos os gostos e níveis mentais, multiplicando-se as "cem melhores", ou as de tais ou tais séculos, escolhidos ao acaso ou sobre os assuntos mais insignificantes. Empenhado em organizar a sua Rinaldo de Fernandes também se incluiu no elenco, porque a boa modéstia começa por casa ("Duas Margens"), acrescentando-se aos "contos" sem intriga e sem ação. As mais atrativas começam na aurora da humanidade, com fábulas religiosas e folclore universal, tudo isso permitindo supor que, se os brasileiro não lê, segundo o lugar-comum aceito, cabe imaginar que pelo menos, finge ler, lendo o menos possível nos extratos que lhe oferecem.

Convidado por João do Rio para depor na série de entrevistas que iriam compor, em 1908, O Momento Literário, consta que José Veríssimo, negando-se a participar, teria resmungado numa roda que esse era um processo de fazer livros à custa dos outros. Ofensa desnecessária a João do Rio, com quem o crítico não sentia a menor afinidade, mas levando-o a ignorar o alto valor documentário desse tipo de inquérito (aliás imitado dos franceses, matriz intelectual do próprio José Veríssimo). Em outras palavras, há antologias e antologias, a maior parte destinada a aproveitar comercialmente conjuntura favorável do mercado editorial, enquanto outras poucas se incluem entre as obras essenciais e cômodas do trabalho.

Pela lei dos grandes números, a maior parte dos contos coligidos por Rinaldo de Fernandes não se compara em qualidade com os melhores: os de Rubem Fonseca, mestre indiscutido do gênero ("Feliz Ano Novo"), prolongando-se em Lygia Fagundes Telles ("Venha Ver o Pôr-do-sol"), história de amor que nada tem de comum com outras histórias de amor, a começar pelo que em outros tempos não ousava dizer o seu nome (Caio Fernando Abreu. "Sargento Garcia"), além de outras histórias de amor, a de Miguel Sanches Neto ("Redentor"), ou a de Cecília Prada ("Insólita Flor do Sexo"), abrindo-se com isso a série dos contos de alta qualidade, sem implicações necessárias com a violência: "Guri" (Cíntia Moscovich), "A Cabeça" (Luiz Vilela), "A Noiva Imortal" (Marcelo Coelho), "A Morte de D.J. em Paris" (Roberto Drummond), "O Segredo" (Carlos Ribeiro), "Capitu Sou Eu" (Dalton Trevisan), "A Moça do Sobrado" (Domingos Pellegrini), "O Prisioneiro" (José Castello) – número reduzido num conjunto abundante, mas essa é a ordem natural das coisas.

Mas, qual o critério para julgar da qualidade? É o estilo: só há literatura onde houver estilo, o que tornaria tudo mais fácil se ao menos soubéssemos o que é estilo, noção inevitavemente definida por tautologismos, como se pode comprovar nos dicionários de literatura. Tomemos, por exemplo, Jonathan Swift na "Carta a um Jovem Clérigo" (1720): Proper words in proper places, make the true definition of a style. Essa carta pouco terá ensinado ao jovem clérigo, assim como não se sabe se o jovem poeta começou a produzir versos melhores depois da carta de Rilke. Na verdade e na linha do diderotiano paradoxo do comediante, há também o paradoxo do estilo literário, no qual não se trata de palavras certas no lugar certo, mas de invenções e articulação dos episódios, tudo sob o signo da verossimilhança, embora muitos autores, jovens e menos jovens, incluindo alguns dos selecionados por Rinaldo de Fernandes, pareçam convencidos de que o estilo literário é a arte de escrever palavras, assim como Mallarmé dizia que o poema (não a poesia, ao contrário do contra-senso corrente) faz-se com palavras. O palavrão desafiador, gratuito e ornamental, é inútil e contraproducente; o palavrão necessário, como em Rubem Fonseca, é elemento intrínseco e indispensável da verossimilhança.

Há, atualmente, em nossas letras uma escola da "transgressão", mas propô-la como literatura de qualidade superior é optar pela facilidade, já que a própria literatura é, por definição, de natureza transgressiva (mas, para isso, é preciso talento). O estilo é feito de dificuldades vencidas. Em literatura, dizia André Gide, que sabia do que estava falando, devemos seguir as nossas inclinações – mas no sentido da subida.

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