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Afluente oriental do rio Jordão, foi nas margens do Jaboc que se travou a legendária luta de Jacob com o Anjo, notando-se , desde logo, o anagrama recíproco das duas palavras. Otto Leopoldo Winck não esclarece que sugestões simbólicas ou metafóricas tinha em mente ao intitular o seu romance pelo nome do rio (Jaboc Rio Garamond, 2006), permitindo pensar que se trata da luta do romancista contra o Anjo da literatura, história de "um cara que está escrevendo um livro", luta em que o "cara" acaba derrotado sem jamais conseguir concluí-lo: os originais são destruídos num ato de desespero impotente (o prélio de Jacob com o Anjo terminou em empate, como se sabe).

Eis a cena final: "Já no escritório, apanhou da gaveta da escrivaninha um envelope pardo cujo conteúdo não devia ter pouca coisa. Com efeito, de dentro dele surgiu um volumoso maço de folhas de papel. Na primeira página, bem no centro, em tipos grandes, lia-se A educação de Sísifo. Mas estava riscado, e logo acima, manuscrito à caneta, Jaboc". Sísifo empurrando a pedra, Jacob lutando com o Anjo, Conrad que, a propósito de Nostromo, dizia ter lutado durante vinte anos contra o Senhor – é sempre a "luta pela expressão" em que Fidelino de Figueiredo, num pequeno clássico, resumia a existência do escritor.

Dominado por obsessões literárias paralisantes (Fernando Pessoa, Camus), falta ao protagonista-narrador o talento necessário para realizar o próprio projeto, cuja condição incontornável seria começar por rejeitá-las. Ocorre, de resto, um defeito de enfocação: vemos o romancista escrevendo, mas não o que escreve, não o romance que deveria mostrar en abime, expressão que os professores da literatura gostam de repetir. O que vemos, ao contrário, é o bloco mental do romancista: "Estacou num parágrafo que não conseguia refazer. Alterou a ordem das frases, intercambiou orações, substituiu palavras, fragmentou períodos ou, ao contrário, eneadeou-os. Nada ficava bom. Às vezes dava vontade de fazer tudo, qualquer negócio, menos escrever". Isso ocorre porque escreve no vazio, sem assunto nem matéria, sem personagens, sem intriga, sem desenvolvimento dramático. Ora, escrever é verbo transitivo, sobretudo em literatura: o Journal des Faux Monnayeurs só tem interesse porque Gide escreveu Os moedeiros falsos.

O malogro do personagem acompanha o sentimento obscuro da própria decadência intelectual: "Ele que já fora considerado um docente brilhante, talvez o melhor do departamento, estava cônscio de que a qualidade de suas aulas caía sensivelmente, tornando-se muitas vezes fastidiosas, e havendo o risco de transmitir aos olhos dos alunos igual à literatura". A reação compensatória foi dissipar-se em conversas e bebidas de bares supostamente "intelectuais", boêmios ou claramente sórdidos: "Agora, quando precisava espairecer, ele procurava qualquer birosca obscura, baitica, tasca, onde não houvesse necessidade de conversar com ninguém, pelo menos não de literatura [...] seus companheiros eram agora incógnitos bebedores aposentados, desempregados, biltres, pelintras, proxenetas, pequenos empreendedores arruinados.[...] ele nunca se sentia de todo deslocado naquele meio, apesar de nunca ter encontrado um Genet, um Lima Barreto, sequer um novo Bruno" [Bruno Kremen, seu admirado mestre universitário].

Há o lado das "conversas de bar" supostamente intelectuais, canhestra imitação dos famosos "cafés literários" (também idealizados), tomando o lugar das grandes obras jamais escritas: "já leu Bakunin e Broudhon? [...] É um anarquismo, digamos, aristocrático". Chega, afinal, o momento da verdade, ao mesmo tempo vingativo e expiatório: "A pilha de papel na mão, voltou ao banheiro. Sentou-se na beira do bidê. Pôs-se a rasgar em dois, em quatro, em oito, levas de quatro a seis folhas. Depois jogava os pedaços na privada e dava a descarga. Consumiu nesse procedimento, vagaroso, minucioso, monótono, cerca de quinze minutos. [...] Em seguida, retornou ao escritório. Ligou o computador, acessou o arquivo denominado Sísifo, selecionou e pressionou a tecla com a palavra delete. [...]".

O desfecho é ambíguo, talvez opcional: ou o personagem atira-se do seu 24º andar, ou cancela a última frase: "No lugar dela, digitou: De repente, ele girou sobre o seu corpo galgando o balcão, retornou à segurança do aposento. Encaminhou-se ao computador, encarou a tela em branco, teclou. Ele precisava escrever um livro, a qualquer preço". É o livro que desejaria escrever e para o qual não tem assunto, "história em si um tanto enfadonha... a trama de feitura de um livro, com os percalços de seu autor ao fundo, um escritor em crise de criatividade, com todos aqueles ingredientes de solidão, angústia e álcool... romance cerebral, pop-construtivista, lisérgico-malharmaico [sic], com vários sentidos e níveis de leitura [...] obra-prima ou parolice [...]".

Não chega a ser uma parábola da condição humana, mas, antes, da condição literária em que a vida é uma imitação da literatura.

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