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A matéria poética de Annibal Augusto Gama (Herança jacente. Ribeirão Preto, SP: FUNPEC, 2006) é o Tempo, com maiúscula, não o tempo cronométrico que passa e que passou, mas o tempo bergsoniano que dura e permanece, visto com uma dose salutar de ironia vingativa: "Os dias acumulam-se sobre a minha mesa / como peixes palpitantes, e é preciso / removê-los para o rio, antes que apodreçam. // Os meses, os anos, são varejados de tempestades, / e só um pálido sol os contempla quando as nuvens / se dispersam, para o lago se acumularem / e chove novamente sobre os telhados desabados. [...] Condeno-me a ser eu mesmo na dispersão dos dias / e vou trôpego e faminto para um albergue que não há / quando todas as mansardas só guardam / os móveis quebrados, a máquina de costura, / a canastra com o vestido da noiva e os óculos / que espiam pelas lentes sujas a infinita precariedade / das coisas, a rosa despetalada no jardim, / as alamedas que sumiram no bosque / e a árvore fincada em si mesma / na angústia e na solidão do tempo" ("Lamentação sobre o tempo").

Ele não foi nem é modernista (o que, a esta altura, seria, ao mesmo tempo, arcaico e anacrônico), menos ainda um "pós-modernista" (expressão da moda que não significa nada), mas escreve e pensa depois do Modernismo enquanto escola, sem poder ignorar o mundo literário instituído e consolidado entre 1922 e 1945: nele, como em todos nós, trata-se de uma forma de civilização intelectual. Sua família espiritual é a de Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa, Lêdo Ivo e Affonso Romano de Sant’Anna, Ivan Junqueira e o Mário de Andrade na maturidade – família real que, justamente, revelou o que o Modernismo tinha de perene, ao lado do que teve de efêmero, a exemplo de todas as vanguardas.

Eis a sua arte poética: "Remanescente / me remanejo / para não perder / o meu arquejo. // Me reciclo / a cada ciclo / e faço / uma lavagem / cerebral / a cada ano. [...] Parnasiano fui, / simbolista, / penumbrista, / modernista, / e hoje sou / vanguardista. // Sou também o clássico / de mim mesmo, / mas romântico / na lira do lirismo. // Faço versos / de circunstância / para atender / a instância / de diversos / e adversos, / mas logo grito / o canto social / o metafísico / o hermético / o satânico / o gosmético" ("o remanescente"). Aí está a futilidade das vanguardas e escolas, por muitos propostas como selo de autenticidade poética através do coletivo anonimizante. A poesia é uma aventura individual e individualista: "Passadista, moderno / e eterno / no meu terno de linho / com a gravata amarela / espio da janela / o vôo no olho do furacão / enquanto escrevo no meu caderno".

Na lição desse convencido anti-mallarmeano, não são os poemas, mas a vida que se faz com palavras: "A palavra reacionário / só a ouvi / aos dezoito anos, / porque antes / todos eram revolucionário / gente para frente / progressista / embora capitalista / e pequenos burgueses / em que se podia / confiar. // Você podia ser / filatelista / numismata / charadista / anarquista / poeta parnasiano / ou simbolista / sem deixar de ser / homem de respeito / a que todos / rendiam preito". Os grandes sistemas e as grandes doutrinas são apenas exercícios nominalistas, assim como o grande mistério consiste em não haver mistério nenhum segundo o realista Alberto Caeiro, mestre de Annibal Augusto Gama.

Viver, diz este último, "é como andar de bicicleta: / você aprende, / e muitos anos depois / se você tentar, anda. // Uns tombos, / e o joelho esfolado. / Mas depois / quem nunca comeu melado / quando come / se lambuza". O que nos introduz ao uso humorístico e até filosófico que Annibal Gama faz da sabedoria popular e seus anexins: "Foi a vaca para o brejo / sem que ninguém tirasse / o cavalo da chuva. // Sacrificaram o bode expiatório / e botaram / o burrinho no oratório. // Quem canta seus males espanta, / mas foi cantando / qe me passaram a manta. // Agora é que são elas, / quando a porca / torce o rabo / e a canoa está furada" ("Com tudo isso"). O Tempo conduz à irreverência e ao ceticismo, como no poema sobre o legendário Vale de Josafá: "Quando sairem das suas covas / para se reunir no Vale de Josafá / todos os mortos / desde Adão e Eva / a Terra ficará tão esburacada / que eles se afundarão de novo / nas próprias crateras abertas. [...] Bilhões, bilhões, bilhões. bilhões / de defuntos / juntos. / Todos os pecados / desmascarados / e uns poucos de inocentes, justos, / sem saber".

Como acreditar nessa história? Eis as estrofes finais: "Como no último Baile da Ilha Fiscal, / os condes de redingote, / as duquesas de saia balão / a mãe de família e a cocote / proclamarão / a República dos Anjos e dos Arcanjos, / e eu, / sentado no meu coxim / tocarei o meu bandolim / e será o fim". Tocando bandolim, mas não se sabe se à direita ou à esquerda do Grande Justiceiro, tanto mais que tudo foi inútil e a história recomeça: "O fim de toda carne, / e as almas voarão em bando / cada uma para o seu destino, / enquanto Deus de novo / mistura as águas / e as mágoas".

Será, contudo, um espetáculo aterrador: "Na ponta de um alfinete. / Deus é capaz de aglomerar / todas as criaturas / e lhes porá / na testa / o sinete / da sua salvação / ou da sua danação. // Haverá choro e ranger de dentes / e gritos de aleluia, hosanas, / pragas e proclamas". No final dos tempos e do Tempo, misteriosas entidades condicionaram a vida pela imagem da lamparina, coda de sapiência para as ambições insatisfeitas: "Basta uma lamparina / para alumiar um quarto... Basta uma palavra / para amar e magoar. / Basta uma vida / que já vai acabar".

O "imortal soluço da vida" de que falava outro poeta, ficou, entretanto, cristalizado nos humildes objetos cotidianos: velhos manuais didáticos ("A educação nos livros"), revistas de outras eras, imagens imobilizadas de um mundo perempto, que parecia eterno e era apenas transitório: "Eu sei tudo! / Eu sei tudo! / Lendo a revista / você podia aprender / tudo / podia saber tudo. [...] Mais tarde apareceria a Vamos ler... a Vida doméstica ... o Fon-Fon... o Malho... a Careta... com Getúlio Vargas na capa". O poeta recupera o passado por esses salvados de naufrágios, testemunhos sentimentais de idades para sempre perdidas.

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