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Se a matéria poética de Annibal Augusto Gama é o Tempo, a de Vitto Santos (Breviário do Pássaro de Fogo. Rio: Imago, 2006) é o Homem, ou seja, praticamente a mesma coisa. Assemelham-se, antes de mais nada, por terem aguardado a maturidade intelectual para estrear em livro – Vitto Santos aos 30 anos e Augusto Gama aos 70, resultando, num e noutro, em textos de notável densidade poética, pois poesia literária não é sentimento e emoção, mas emoção e sentimento fertilizados pela experiência existencial. Um dos livros de Vitto Santos chama-se, justamente, A explicação do homem (1981), homem explicado, escrevi àquela altura, através de poemas organicamente ligados uns aos outros, painéis de um quadro único que o presente pelos variados atributos da condição humana. Para isso, inventou uma nova linguagem poética de grande beleza rítmica e força sugestiva, alargando o espaço semântico da poesia brasileira.

Praticando, em geral, o verso livre, com eventuais retornos à metrificação regular e aos poemas de forma fixa como o soneto, o ritmo dos seus versos não é marcada pela pontuação, digamos, sintática, mas pela pontuação expressiva, como a interrogação e a exclamação. Sem vírgulas e pontos, a cadência estabelece-se automaticamente por si mesma, como neste verso:

"Sê sincero lago falso falso espelho [...]". Trata-se do lago de Narciso: "Que diz o lago a Narciso / Se Narciso é falso [...]". Ou então, em outro poema: "A rosa ardente nasce audaciosa / Da tímida roseira... Não é flor para mãos de moças lívidas... A rosa é de quem ama as rosas rosas".

Recusando a rima ou praticando-a com liberdades e irregularidades deliberadas, pode-se dizer que Vitto Santos é poeta mais harmônico que melódico, pois não raro sua melodia é incompleta, sob as espécies algo decepcionantes da rima toante. Ele rima "ourives" com "terríveis", "ferro" com "severo", ou compõe sonetos em que as rimas do segundo quarteto não são as mesmas do primeiro. Mas, cede, eventualmente, à nostalgia da disciplina: "As ondas vinham amassando flores / Nas hélices de espuma arrebentadas", versos da primeira estrofe com eco na segunda: " As ondas iam carregando flores [...]", e, na terceira: "As ondas vinham não traziam flores [...]", e assim por diante, num pantum, digamos, embrionário.

Poemas a serem lidos unitariamente como peça única compõe a "explicação do homem": o homem é o seu nome, seu retrato, sua voz, seu sangue, seu signo, seu ofício, seu Deus, sua Morte [...]. Leiamos por inteiro a série desse conjunto identificador, ou tomemos simplesmente como exemplo o poema dos Signos, espécie de caracterologia sideral transposta para a História: "Goya era de Aries... Balzac de Touro... Lorca de Gêmeos... César de Câncer... Na-poleão de Leão... Allan Poe de Escorpião... Churchill de Sagitário... Mozart de Aquário... Chopin de Peixes [...]". A astrologia é sempre mais poética que astronômica, não importa: "O homem é o seu signo / Os astros são fantasia e fascínio / A astrologia contraria / a filosofia e a teologia / Mas não a poesia".

Voltando à Terra e à grosseira realidade, o homem é o seu retrato: "Ali na frente do espelho / Está o protótipo do homem", mas o verdadeiro retrato do homem chama-se Dorian Gray: "A figura do espelho não envelhece... mas os retratos perecem... É fácil iludir o tempo... É impossível enganar a verdade // Que quereis? / É o retrato do homem / Que quereis? / É o retrato de Dorian Gray". O terceiro ato da comédia humana passa-se na "Capela C": "Se estão cinqüenta na sala / Um somente está deitado / Quarenta e nove conversam / um somente está calado // Assim deitado e calado / Aguarda o momento exato / É proibido sair / Enquanto o sino não bate // Por que ataram seus pés / Porque cobriram seu rosto / Por que cerraram seus olhos / Cruzaram as mãos no corpo? // Ele preside a Assembléia / É o chefe da cerimônia / Mas se recusa a dar ordens / Deixa que os outros disponham // Cessado o pranto e o murmúrio / Mãos destras e impacientes / Colocam a tampa da urna / Ninguém ninguém se ressente". Observem os adjetivos como condimento de humor negro, a completar com o humor inevitável da última estrofe: "Todos se agarram à vida / Que sobrou como se fosse / Um grande alívio atirá-lo / Nas trevas do fundo poço".

Annibal Augusto Gama e Vitto Santos são poetas "modernos" no que o conceito tem de intemporal e permanente. Estão além de Bandeira e Drummond (aqui tomados como nomes emblemáticos), sem por isso ignorá-los ou repudiá-los, antes restituindo-os à sua "idade poética" individual, sem imaginar, tampouco, que foram os últimos poetas possíveis em nossas letras. Souberam ou puderam superar o vírus esterilizante que todas as escolas e estéticas trazem consigo, rejeitando o coletivo anonimizador para afirmarem-se como personalidades inconfundíveis. Poetas posteriores pensaram afirmar-se como membros dos grupos em que se inscreviam, desaparecendo com eles. É a miragem das "gerações" tomadas como representantes de uma estética, ainda na ilusória suposição de que cada uma delas traz mensagem nova e revolucionária, para nada dizer da intenção contestatória tão banal quanto previsível.

O Modernismo institui dois mitos – o da modernidade obrigatória e o da "revolução" estética como forma necessária de desenvolvimento. Daí a germinação das "vanguardas" que se multiplicaram de decênio em decênio por simples emulação. Ser vanguardista e moderno tornou-se lugar-comum, irremissível pecado mortal em literatura. Assim chegou, como era inevitável, o momento da obsolescência: "E como ficou chato ser moderno", exclamou o Filho Bem Amado do Modernismo: "A cada instante se criam novas categorias do eterno [...]". Contudo, o eterno "é tudo que passou, porque passou / é tudo que não passa, pois não houve / eternas as palavras, eternos os pensamentos: e passageiras as obras [...]". Como todos os modernos, ele também sonhava ser eterno... mas, "não quero ser senão eterno. / Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essência".

Assim falou Carlos Drummond de Andrade num poema intitulado precisamente "Eterno", posto sob o signo pascaliano da Eternidade, o silêncio aterrador dos espaços infinitos.

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