
É possível atribuir papel importante à literatura no que diz respeito à recepção das idéias de Freud em países como França e Brasil, na década de 1920. Se, atualmente, Paris tomou o lugar de Viena como capital da psicanálise, é interessante observar que a sua entrada na França não se deu apenas no meio médico. Foi pela via literária, sobretudo pelo surrealismo, que a psicanálise foi aceita na sociedade francesa com menos ressalvas. Neste sentido, o caso do psicanalista Jacques Lacan é emblemático. Embora médico e discípulo de tradicionais psiquiatras franceses, Lacan, segundo a biógrafa Elisabeth Roudinesco, encontrou no método "paranóico-crítico" do surrealista Salvador Dalí, o instrumento que lhe faltava à teorização de sua experiência clínica em matéria de paranóia.
Os historiadores da psicanálise no Brasil também apontam a entrada da psicanálise no país pela via literária, além da médica. É notória a apropriação de idéias freudianas que modernistas brasileiros fizeram. Como ilustração, cabe apontar que Oswald de Andrade cita três vezes Freud no Manifesto Antropofágico e Mário de Andrade foi até criticado por excesso de freudismo no romance Amar, Verbo Intransitivo. Provavelmente, os modernistas se afinavam com Freud porque o viam como um crítico das noções de progresso, verdade e consciência.
A literatura na psicanálise
A questão não é só de recepção. A presença da literatura na gênese da psicanálise não é secundária. Freud dedicou diversos ensaios mais ou menos conhecidos ao tema. Mais importante, porém, que listar tais obras, é observar a importância que o médico vienense confere à literatura ao longo de seus estudos. Mesmo em textos teóricos e técnicos da psicanálise, Freud recorre constantemente ao tema literário.
A literatura ancora um dos conceitos basilares da psicanálise: o complexo de Édipo. Por mais que se considere a tragédia de Édipo Rei não uma obra literária de Sófocles, mas uma lenda da Antigüidade, ainda assim Freud a relaciona com um clássico das letras: Hamlet, de William Shakespeare.
Em A Interpretação dos Sonhos, ele recorre ao Édipo Rei para demonstrar a universalidade de desejos amorosos e hostis que a criança mantém com seus pais. Curiosamente, Freud age como crítico literário, fazendo literatura comparada. Para ele, o poeta e dramaturgo Franz Grillparzer, autor de Die Ahnfrau (que também trata de parricídio e incesto) não faz uma tragédia tão competente como Sófocles porque a compulsão edipiana não é individual e a sua força literária reside em nos reconhecermos nela.
Freud acentua que Édipo e Hamlet têm raízes no impulso incestuoso e parricida. No Édipo, porém, a fantasia infantil imaginária subjacente ao texto é exposta e realizada enquanto que, em Hamlet, a fantasia permanece recalcada e só ficamos cientes de sua existência por meio de suas conseqüências inibidoras. A diferença destes tipos de abordagens revela a diferença na vida mental destas épocas bastante separadas da civilização. Subjaz, nesta idéia freudiana, a tese de que o recalcamento avança na medida em que avança a civilização.
Freud se aventura também como um tipo particular de crítico. Não exatamente literário porque, para ele, interessa mais o uso da literatura para fundamentar suas teorias do que a análise do fenômeno literário. Mesmo assim, era atento à fortuna crítica de Hamlet. Ele discorda de Goethe que vê no príncipe um hesitante. Para Freud, Hamlet hesita somente na tarefa mais difícil: vingar-se do homem que eliminou o seu pai e tomou o seu lugar ao lado da mãe. Hamlet não o mata porque este homem (seu tio Claudius) realizou os desejos recalcados de sua própria infância.
O crítico literário norte-americano Harold Bloom acha intrigante Freud ter denominado "Édipo" e não "Hamlet" o seu conceito, uma vez que o psicanalista teria se ocupado mais com o último. Bloom afirma que Hamlet não sofria de complexo de Édipo, mas Freud tinha "complexo de Hamlet" e toda a psicanálise seria o "complexo de Shakespeare".
A crítica literária psicanalítica
Bloom não é psicanalista e tampouco considera a psicanálise relevante do ponto de vista clínico, mas sua teoria exposta em Angústia da Influência é tributária de teorias freudianas, sobretudo do complexo de Édipo. Para Bloom, os poetas vivem preocupados à sombra de um poeta forte anterior a eles, como filhos oprimidos pelo pai e qualquer poema pode ser lido como uma tentativa de escapar dessa "angústia da influência".
Quando se pensa na crítica literária psicanalítica, mais comum que o caso de Bloom é lembrar das críticas literárias feitas por psicanalistas. Neste caso, as mais interessantes são as que consideram o arsenal da psicanálise auxiliar e não exclusivo na tarefa de elucidar o fenômeno literário. E, dentre essas, as que se focam no texto e não no personagem ou no autor são as mais ricas. Caso contrário, o resultado é a uniformização de obras, oposto à clínica psicanalítica que privilegia o discurso singular. Hoje, não cabe recorrer a Freud para justificar um tipo de "crítica literária" que comprime ou fecha a obra. É preciso considerar o momento histórico de construção da teoria freudiana. Como lembra o psicanalista Renato Mezan (Freud, Pensador da Cultura), a referência à literatura sempre esteve relacionada à sua auto-análise. Freud só podia compreender o discurso de seus pacientes na medida em que, através de sua auto-análise, também observava impulsos similares e assim os nomeava. A passagem pela cultura contribui para diminuir a culpabilidade inerente à transgressão de interditos que a psicanálise proporciona. Se os fenômenos são passíveis de uma transcrição cultural, é porque se verificam em todos ou pelo menos em outros homens. Vale lembrar que é justamente neste contexto de sua análise que Freud recorre tanto ao Édipo Rei quanto ao Hamlet.
O cuidado e a reverência com que Freud trata de temas literários ficam bem evidentes no trecho da carta que dedicou ao escritor Arthur Schnitzler, autor de Breve Romance de Sonho, na ocasião do seu 60.º aniversário: "Cheguei à conclusão de que o senhor sabe por intuição é verdade que devido a uma aguda observação de si mesmo tudo o que descobri depois de fatigantes trabalhos com outros homens. Creio que, no íntimo de seu ser, o senhor é um profundo investigador da alma, tão honestamente imparcial e intrépido como nenhum outro jamais foi".
Marcio Robert é psicanalista e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.marciorobert@gmail.com



