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Villa-Lobos e Leopold Stokowski no City Center, Nova York, em 1945 | Divulgação/Museu Villa-Lobos
Villa-Lobos e Leopold Stokowski no City Center, Nova York, em 1945| Foto: Divulgação/Museu Villa-Lobos

A lembrança de Villa-Lobos, nestes 50 anos passados do seu falecimento, é ainda algo envolto numa aura de misticismo, até mesmo para muitos compositores que vieram depois dele. Para alguns, o sucesso internacional dele seria injustificável, pois não fosse o apoio obtido na época da ditadura de Getúlio Vargas, ele não teria tido tal projeção. Muitos músicos de sua geração, especialmente os compositores, chegaram a uma idade provecta esbravejando contra o compositor dos "Choros" e das "Bachianas Brasileiras". Mas, passado todo esse tempo, qual seria realmente a visão que se tem dele hoje, no Brasil, e no resto do mundo, especialmente por parte dos seus colegas de ofício?

O que é mais incrível é que, na América Latina, ele é tocado, com frequência, venerado e tido como um grande modelo a ser seguido. Ele seria a síntese de um pensamento estético essencialmente continental. Essa visão também é um pouco recorrente nos Estados Unidos. Na Europa e na Ásia, onde sua música é frequentemente executada, ele é o maior representante da música erudita brasileira e não parece haver muita discussão sobre a sua exuberância musical, que para o senso comum, é o que o Brasil representa. Porém, no Brasil, o culto à sua obra inexiste e os sentimentos em torno de sua pessoa e sua produção continuam controvertidos.

Na música popular, fala-se muito de sua contribuição para a criação desse pensamento musical brasileiro, mas pouco se conhece de sua produção, que é enorme e extremamente variada. Villa-Lobos viveu numa época de grandes transformações no Brasil e no mundo. Soube absorver tudo aquilo que o rodeava de uma maneira muito espontânea e nada acadêmica, o que cria sérias dificuldades para aqueles que querem rotulá-lo.

No início, parece que ele tenta manter duas produções separadas, uma popular de salão, e outra erudita. Quando se pensa, por exemplo, na sua primeira obra, a Suíte Popular Brasileira para Violão, de 1910, é uma obra que se refere à primeira categoria. Já quando nos vemos diante do seu Concerto N.º 1 para Violoncelo, Sinfonieta N.º 1, ambos de 1915, ou mesmo de seus Quartetos de Cordas N.º 2, 3 e 4, fica muito claro o seu fascínio pela música francesa de D’Indy, Fauré e, principalmente, de Ravel e Debussy, quase seus contemporâneos. É em obras como o Quar­­teto N.º 1e nas Danças Afri­­ca­­nas (que de africanas não têm nada!) que começamos a ver o compositor começando a misturar as duas correntes.

No momento em que ele aparece na Semana de Arte Moderna, em 1922, ele apresenta uma obra extraordinária em todos os aspectos, o Quarteto Simbólico, para a curiosa formação de flauta, sax-alto, harpa e celesta, com a participação de um coro oculto atrás da cortina. A sonoridade é bem francesa, mas os ritmos sincopados são essencialmente de origem popular brasileira, provavelmente dos batuques espontâneos de rua, mais do que de chorinhos ou serenatas. A partir daí, com as frequentes viagens a Paris, é que Villa-Lobos vai descobrir todo um novo mundo sonoro. É durante a década de 1920 que ele vai escrever as suas obras mais originais, como o ciclo dos 12 "Choros", a maior parte das obras para conjuntos de sopros e os mais impressionantes poemas sinfônicos, como Uirapuru e Amazonas, além do extraordinário Rudepoema, para piano-solo. Não há dúvidas hoje em dia, do impacto causado pela audição de A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, numa de suas temporadas na capital francesa.

Os ecos dessa obra aparecem claramente em algumas composições de Villa. As obras dessa fase serão experimentais nas quais aspectos atonais, sobreposições rítmicas e formas não-lineares aparecerão frequentemente, como se a Sagração tivesse libertado toda a criatividade do compositor. A ousadia dos "Choros" n.º 8, 10 e 11 será algo nunca imaginado na música escrita no Brasil, nem mesmo depois.

Mesmo hoje em dia, com total liberdade de escrita, com festivais como a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, no Rio de Janeiro, e os Festivais Música Nova, em Santos e São Paulo encontramos atitudes tão desafiadoras e originais por parte dos compositores quanto aquelas apresentadas por Villa-Lobos na década de 1920.

Depois disso, o compositor tor­­nou-se mais conservador, bus­­cando formas mais neo-clássicas, como nas suas "Bachianas Brasileiras", nas quais ele tenta se enquadrar na forma suíte, um pouco à maneira de compositores do século 18, o que estava começando a se tornar um modismo nas décadas de 30 e 40. Talvez cansado das reclamações dos músicos de que sua obra seria difícil e confusa, e pela in­­com­­pre­­ensão do público, o compositor busca um caminho mais fácil com melodias cativantes. Porém, a sua personalidade mu­­sical continuará inequívoca.

Os ecos dos momentos mais experimentais vão aparecer sempre na sua produção subseqüente. A presença da música popular na sua obra é sem dúvida uma constante, mas a sua estética se sustenta e cativa pela sua inventividade constante, pelos desníveis abruptos e surpresas sucessivas.

Numa audição recente do "Choros n.º 10", para coro e or­­questra, no encerramento da temporada de concertos de verão em Londres, o famoso PROMS, a apresentadora da BBC 3 definiu a música como uma mistura do compositor franco-americano Edgar Varese (que foi aluno e amigo de Villa e escreveu a primeira obra exclusivamente para instrumentos de percussão), com a trilha sonora do filme King Kong. Isso demonstra que a sua música é ainda pulsante, incômoda e difícil de ser rotulada.

Para muitos compositores que conheci até hoje, quando lhes falta ideias para compor, ouvem alguma obra de Stra­­vinsky, que sem dúvida tem sido o maior inspirador de novas gerações em todo o mundo, mais do que Schönberg, Webern, Hin­­de­­mith ou Bartok. Para mim, po­­rém, a audição e o estudo constante das criações citadas do mestre Villa é que me impulsiona para muitas novas idéias.

* Harry Crowl é compositor erudito e reside em Curitiba

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