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Thomas Pynchon é o cara.

Sabe, tipo, "o" cara? É o Pynchon.

Talvez o nome mais importante entre os romancistas americanos vivos. Eterno candidato ao Nobel. O sujeito que uma vez convenceu unanimemente o júri do prêmio Pulitzer apenas para ver os organizadores se recusarem a premiar um romance "indecente" e "ilegível" (O Arco-Íris da Gravidade, de 1974).

O mais famoso recluso da literatura (sua foto mais recente tem quase 50 anos). O sujeito que participou duas vezes dos Simpsons, sempre com um saco de papel na cabeça.

Uma das maiores vítimas da fama de autor difícil.

Mas isso tudo lá, nos Esteites.

Porque aqui não sei se nem mesmo a reputação de pedranossapato ele mantém.

Então, então.

Às claras.

O cara é mole? Não.

É impossível? Nêeeh...

Então qual que é a do homem?

Qual que é a do homem

Um: todo leitor de ficção perde se não tentar ler Pynchon. Dois: essa reputação toda não deve evocar imagens de cerebralismos, cabecices e congêneres.

Seus livros têm, sim, estruturas complexas, elaboradas redes de inter-referências e recorrem a citações de tudo quanto é literatura e cultura. Mas com que variedade! De Aristóteles ao Hortelino, dos Beatles ao cantochão, pincha-se de tudo no sacolão do seu Pynchão.

E o mais fundamental ainda é que muito antes de você perceber essas estruturas, redes e citações, o que vai te saltar aos olhos é em geral pura patetice.

Tipo um personagem que quase morre soterrado por maionese.

Já se disse que Pynchon fez da imperfeição uma arte. Suas tramas raramente se fecham, seus personagens por vezes somem. Ele cria teias complexas, mas não espere que, à moda de um suspense hollywoodiano, ele amarre bonitinhamente as pontas todas. Elas em geral ficam lá, te provocando por mais uns anos...

Acima de acimíssima de qualquer coisa, não espere, meu amigo.

Não espere livros, digamos, comuns. Mas também deixe no armário as tuas ferramentas usuais de ler literatura elevada. Simplesmente recline o poltronão e embarque na viagem (trocadilho inevitável), com a vantagem de estar entregando os olhos e os ouvidos a um prosador inventivo, lírico, engraçado e competente como o diabo.

E, quer saber? De repente essa inconseqüência de superfície tem mesmo ligação com o tema mais recorrente em todos os romances pynchonianos: a paranóia, a idéia de que algo, em algum lugar, preside uma estrutura que engloba a tudo; mas não esqueça que aqui, na superfície, são ditas loucas as pessoas que acreditam ver essa estrutura.

A pele do mundo obedece ainda e sempre ao caos.

Vejamos então as tatuagens, ora pois.

Eles?

Todos os romances, e de forma mais sintetizada a novela O Leilão do Lote 49, são povoados por personagens que, repentinamente, se descobrem vítimas de tramas, esquemas e complôs cuja profundidade só começam a perceber quando mais se afundam neles.

Ou não.

A Oedipa Maas do Leilão (notinha: os nomes dos personagens de Pynchon são um caso à parte: do Reverendo Cherrycoke a Zoyd Herbert Wheeler, passando por sua esposa Frenesi e o magnata Scarsdale Vibe..), aquela que Harold Bloom já apontou ser o melhor personagem de Pynchon, é também o melhor exemplo desse fenômeno.

Ela pode ter descoberto um sistema alternativo de correios, uma conspiração que remonta à Europa do renascimento e que envolve inclusive a manipulação de uma tragédia jacobina. Ela pode estar exagerando, pode estar cercada por loucos alucinados, pode estar sendo vítima da última piada de um ex-namorado.

Mas ela sofre. E você sofre com ela. E como.

O tenente Tyrone Slothrop, de O Arco-Íris da Gravidade, parece (palavra que vai sempre dar as caras) ter sido vítima de experiências psicológicas estranhas na infância, assim como parece ser capaz de prever, por meio de uma ereção incontrolável, os cantos de Londres que serão atingidos pelas bombas voadoras alemãs. Mas na verdade ele pode mesmo estar sendo manipulado pelo livro. Ou pelo haxixe.

Ele é simplório demais para saber.

Eles!

Pois ao contrário de Oedipa, Slothrop é um dos não poucos casos de personagens quase-alegóricos da obra de Pynchon. E o fim que se dá a ele na trama, apesar de a alguns parecer mal-ajambrado, resolve precisamente essa questão.

A crítica Michiko Kakutani, que dá os nomes aos bois literários americanos, disse que os personagens de Pynchon não são humanos. Eu mesmo já disse isso. Ora... Guilherme Manika, possivelmente o maior entendido na obra de Pynchon aqui nos pinhais, disse bem: isso pode ser não sacar a do seu Pynchon.

Eles, os personagens, estão à mercê d’eles, os que tangem a conspiração. O caso é só que Oedipa reage mais hamletianamente. Slothrop é mais parecido com você e comigo.

Bêbados, talvez.

Slothrop é definitivamente um personagem tão poderoso quanto Oedipa, mas muito menos convencional.

Ele é simples? Pode ser. É esquemático? Ora, bolas, ele passa metade do livro fantasiado de homem-foguete!

Isso é defeito?

Usualmente é. Exatamente como a maior parte das qualidades maiores de seus maiores romances.

Então

A minha conclusão pessoal é que Pynchon vicia. Já passei por todas as fases com os livros dele. Mas hoje viciei.

Não sei se é por este livro novo ter chegado nessa hora mas, pra mim, esse Against the Day, que saiu tem um mês, é o melhor que ele já escreveu.

É como que um resumo de toda a obra (o que equivale a dizer que se você não gostou dos outros vai odiar esse aqui). Todos os temas, as idéias, as imagens recorrem e se reelaboram em forma mais definitiva.

O Pynchon de quase 70 anos é menos bobo. Mas o senso de humor continua lá.

Mais emotivo.

Ele é capaz de te fazer, na página 1.062 (exatamente) chegar à conclusão de que teria valido a pena ler tudo aquilo só por aquele momento. E que aquele momento realmente precisou de 1.061 páginas para ser criado.

Disseram que o livro não tem estória?

É, mas e daí? Ele tem um tema, os duplos, que o une perfeitamente e que é um clássico da literatura do período em que se passa a ação (o fim do século 19 e o começo do 20). E tem dezenas de estórias.

E, pra começo de conversa, se você foi ler Pynchon esperando uma trama linear você definitivamente comprou o livro errado, não é?

Mas um resenhista romeno disse que são três livros em um...?

Pois eu acho que são quatro; ele esqueceu a busca pela mítica cidade de Shambhala. Além dela, há uma perna da narrativa no Oeste americano, uma na Europa e outra em um mundo meio ficcional e meio real, que acompanha as aventuras de uma trupe de balonistas que são personagens de uma série de romances de aventura.

Além de tudo, a idéia que pode soar meio ingênua da eterna conspiração dos poderosos, aqui cede lugar a um mundo mais pénochão, em que os personagens estão mais realisticamente no mundo e uns contra os outros, (o inimigo aqui é o day, e não they).

Mais do que isso, talvez aqui ele tenha agora fundido seus dois mundos, pois se os personagens desse livro não são humanos, especialmente se Dahlia Rideout, seu pai e seu par não são personagens plenos eu pretendo mandar checar meu DNA imediatamente.

Melhor que isso?

São Paulo Henriques Britto informa que já está trabalhando na tradução. Natal que vem tem festa generalizada.

Serviço: O novo livro de Thomas Pynchon, Against the Day (Penguin Press, 1.120 págs., US$ 35) pode ser encontrado em lojas que trabalham com títulos importados, como a Livraria Cultura ou na www.amazon.com.

Caetano Waldrigues Galindo é professor de Lingüística Histórica na Universidade Federal do Paraná e tradutor.

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