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Não se sabe se o livro 2 da Poética de Aristóteles nunca foi escrito, conforme indicado no livro 1, ou se esse manuscrito perdeu-se no tempo. A partir dessa indagação real, um medievalista europeu construiu uma trama fictícia envolvendo venenos fatais e assassinatos em série que explicaria o desaparecimento desse texto em um monastério da Itália medieval. O erudito europeu: Umberto Eco. O romance: O Nome da Rosa. Esse procedimento de construir ficções, no caso, romances policiais, a partir de dados da pesquisa acadêmica, ou a partir do ambiente universitário, também se faz presente na literatura policial brasileira.

Ana Arruda Callado, Reginaldo Prandi e Ada Pellegrini são professores universitários brasileiros com produção acadêmica consolidada em suas áreas: Jornalismo, Sociologia das Religiões e Direito. Os três são também escritores de ficção e publicaram, recentemente, romances policiais, em que a vida universitária e/ou acadêmica está presente, em alguma instância, como elemento construtivo da narrativa.

Na história de Ana Arruda Callado, Uma Aula de Matar (Rocco, R$ 26,50; 160 págs), o mundo universitário aparece como espaço e uma das motivações possíveis para o assassinato investigado: a vítima é um professor de uma instituição pública e faria um concurso para professor titular. Os outros candidatos à vaga são, evidentemente, suspeitos.

Em Morte nos Búzios, de Regi-naldo Prandi (Cia. das Letras, R$ 34; 248 págs), o autor faz com que seu tema de pesquisa, o candomblé, seja o espaço onde se de-senrola a trama e também o próprio motivo do(s) crime(s).

No que diz respeito a transformar o objeto de pesquisa acadêmica no espaço onde se desenvolve a trama e também no motivo do crime ficcional, Prandi tem pelo menos um antecessor nacional recente: Isaias Pessotti, psicólogo e estudioso da história da ciência, que localizou seus três romances (Aqueles Cães Malditos de Arquelau, O Manuscrito de Mediavilla e A Lua da Verdade) no fim da Idade Média e início da Moderna, e enfocou temas vinculados a descobertas e posturas científicas.

A intrincada trama policial construída por Ada Pellegrini intitula-se Morte na USP (Manole, R$ 30; 190 págs.) e envolve um serial killer fictício na Faculdade de Direito e em outros setores da Universidade de São Paulo, em 1971.

O âmbito acadêmico de atuação da autora está presente na escolha do local em que se desenvolve a trama, nas atuações e nos nomes dos personagens secundários (muitos deles reconhecíveis) e na construção das duas personagens centrais: o detetive Otero e o assassino. Ambos travam batalhas jurídicas com argumentos, contra-argumentos e blefes legais.

Tradição

Esses três romances policiais filiam-se, grosso modo, à tradição do romance enigma clássico. Mas com inovação: assim, por exemplo, no texto de Callado, o detetive é uma personagem bastante secundária, e suas funções acabam sendo desempenhadas por outra personagem; no texto de Prandi, o detetive Tiago Paixão é adepto de procedimentos científicos, mas é também um intuitivo.

Destaque-se que, na construção do texto de Morte na USP, há um jogo bem construído com o leitor: a autora insere, sem aviso prévio, mas com marcas claras, no meio de uma narrativa em terceira pessoa, trechos do discurso mental do assassino.

Cabe ao leitor decifrar as falas do assassino e tentar desvendar seus futuros procedimentos. Duas personagens chegam a tematizar esse procedimento narrativo de dar voz, de tentar ouvir a psique do assassino. Após um longo relato de um suspeito, um dos investigadores diz: "Fiquei arrepiado com o depoimento", e a psiquiatra responde: "É natural. Perscrutar a mente humana pode ser doloroso".

Muitos já tiveram a vontade de "eliminar" um colega de trabalho ou de ver "explodir" seu objeto de estudo. Esses escritores o fizeram. Ficcionalmente.

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